A carreira intelectual de Mário de Andrade foi curta. Oficialmente, ela começa em 1917, com o lançamento do livro de poesias “Há uma gota de sangue em cada poema”, e se encerra com sua morte em fevereiro de 1945. Em 28 anos, o multi-intelectual escreveu muito sobre os mais variados assuntos. Vamos nos concentrar nos seus livros de contos. Ao todo, foram três: “Primeiro andar”, “Os contos de Belazarte” e “Contos novos”. Este último foi publicado postumamente.
Dos três, analisemos brevemente a trajetória de “Primeiro andar”. Mário já havia publicado “Há uma gota de sangue em cada poema”, “Pauliceia desvairada”, “A escrava que não é Isaura” e “Losango cáqui”. “Primeiro andar” foi publicado em 1926, quando o autor já contava com 33 anos. Foram 2.500 exemplares editados por Antonio Tisi. A abertura do livro contém uma advertência do autor. Seguem-se “Conto de natal”, “Cocoricó”, “Caçada de macuco”, “Caso pançudo”, “Por trás da porta”, “Galo que não cantou”, “Eva”, “Brasília”, “História com data”, “Moral cotidiana” e “O besouro e a Rosa”.
A segunda edição data de 1932 e foi lançada pela Editora Piratininga S/A. Não se trata de uma verdadeira segunda edição, mas do aproveitamento dos exemplares sobrantes da primeira edição com capa e editora diferentes. No sumário, a advertência inicial está indicada, mas ela não figura no corpo do livro.
Ao organizar suas obras completas em 20 volumes para a Editora Martins, Mário entendeu que alguns escritos seus eram experiências juvenis. Entre eles, “Há uma gota de sangue em cada poema”, “A escrava que não era Isaura” e “Primeiro andar”. Os três livros foram reunidos num só com o título de “Obra imatura”, publicada em 1960, 15 anos depois de sua morte. A “Advertência inicial” permanece como na primeira edição. O autor considera esta a verdadeira segunda edição de “Primeiro andar”, explicando que a segunda edição do livro que circulava ainda era o reaproveitamento das sobras da primeira.
E o autor retira e acrescenta contos. Permanecem “Conto de Natal”, “Caçada de macuco”, “Caso pançudo”, “Galo que não cantou”, “Eva”, “Brasília”, “História com data”, “Moral cotidiana”, “Caso em que entra bugre”, “Briga das pastoras” e “Os sírios”. Mário deu sumiço no conto teatralizado “Cocoricó”, considerando-o hórrido. De fato, o autor expressa nele um forte machismo, apesar de sua alma feminina. Ele já havia feito comentários marginais no mesmo sentido ao ler “Cristais partidos”, primeiro livro de poesia de Gilka Machado, de 1915. “Cocoricó” narra a vida de um casal em que a mulher é intelectual, mas acaba se rendendo às virtudes do lar. O medo dos homens diante da emancipação feminina não é de hoje. “Por trás da porta” também foi retirado e nunca mais apareceu nos escritos do autor. O machismo aqui aparece na relação pai-filha. Já “O besouro e a Rosa” saiu para integrar “Os contos de Belazarte”. Aliás, em “Primeiro andar”, ele já era anunciado como o primeiro conto de Belazarte.
“O besouro e a Rosa” é um conto modelar, revelando toda a sensualidade e o erotismo do autor, além da sua mestria como contista. Ele narra a história de uma moça criada por duas solteironas moralistas. Rosa chegou aos 18 anos linda, sensual, ingênua e casta. Ela vivia para servir às senhoras. Nenhuma intenção sexual passava-lhe pela mente. Uma noite, um besouro entrou no seu quarto e a deflorou enquanto dormia. O conto rendeu uma filmagem especial da Globo pelo centenário de Mário.
Em 2013, “Obra imatura” ganha uma nova edição pela Nova Fronteira, editora do Rio de Janeiro. Trata-se de uma edição crítica com apresentação de Telê Ancona Lopez e erudito estudo de Aline Nogueira Marques. Ao fim de “Há uma gota de sangue em cada poema”, Telê volta com uma análise primorosa do primeiro livro de Mário. Os comentários sobre “Primeiro andar” cabem a Marcos Antonio de Moraes, enquanto que os comentários sobre “A escrava que não é Isaura” competem a João Cezar de Castro Rocha.
Integra o livro também o trabalho infatigável de Mário na revisão dos três livros que integrariam o primeiro volume de suas obras completas. Principalmente, aparece o descarte dos contos que figuraram na primeira edição de “Primeiro andar”. Creio que essa edição de 2013 poderia ser considerada definitiva por uns 50 anos pelo menos, pois nenhuma edição é definitiva. Os estudos acabam exigindo sempre novas edições comentadas, ainda mais em se tratando de autores muito vasculhados como Mário de Andrade.
Mas eis que, em 2018, aparece uma edição de “Primeiro andar” pela Edusp. Não se trata de reeditar “Obra imatura”, mas apenas um livro integrante desta. Voltamos apenas ao primeiro livro de contos de Mário com análise de Jean Pierre Chauvin e José de Paula Ramos Jr. E restauração ecdótica feita por José de Paula Ramos Jr. Há ainda um estudo de Luiza Aguilar e Maiara Heleodoro. A epígrafe de Antonio Candido revela bem a construção cultural de Mário: “... se fosse possível estabelecer uma lei de evolução da nossa vida espiritual, poderíamos talvez dizer que toda ela se rege pela dialética do localismo e do cosmopolitismo”.
Assim expresso, parece que Antonio Candido acredita numa evolução hegeliana do pensamento. Algo quase natural, além dos processos históricos, passando pelo paleolítico, neolítico, civilizações e mundo ocidental. A marcha do espírito fica assim desistoricizada.
Os comentaristas explicam, para mim e para quem me lê, que ecdótica é “ciência do estabelecimento fidedigno de um texto literário e arte de sua preparação para publicação”. Mas essa edição da “Primeiro andar” segue a segunda de Mário. Nela não figuram “Cocoricó”, “Atrás da porta” e “O besouro e a Rosa”. Pelo visto, Mário recusou os dois primeiros pelo seu acentuado caráter sexista. O terceiro reapareceu em outro livro dele. Assim, não se trata da segunda edição de “Primeiro andar” a partir da primeira edição de 1926, mas da segunda edição do livro conforme se apresenta em “Obra imatura”.
Estão em marcha, atualmente, vários movimentos de afirmação e valorização dos excluídos, esquecidos e marginalizados. A mulher, os pobres, os negros, os diversos gêneros e outras raças que não a branca estão se valorizando. A luta contra o preconceito é generalizada e salutar. Mas eu noto novos preconceitos que brotam nesses movimentos. Os mais lúcidos entendem as formas de discriminação geradas pelo ocidente. Devo carregar preconceitos na minha formação, embora negue. Eles afloram espontaneamente. Naqueles que lutam contra os preconceitos também há preconceitos. Não podemos banir a história do mundo atual. Certo que não cabe mais exaltar a figura do rei Leopoldo, da Bélgica. Se sua estátua em praça pública não tem mais cabimento, ela deve ser colocada num museu.
Embora tivesse uma sexualidade complexa, Mário de Andrade manifesta machismo no início de sua vida intelectual. Essa manifestação não deve ser apagada. A recuperação da sua trajetória somente esclarece sua época. Daí que advogo como necessária a reunião de seus contos rejeitados e dispersos em publicações avulsas num volume de contos não planejado por ele.