Sérgio Arruda de Moura: A burguesia fede
Sérgio Arruda de Moura - Atualizado em 05/11/2020 13:15
Nesta semana, a burguesia fedeu um pouco mais. Foi o roqueiro Cazuza, na música “A burguesia fede”, quem tornou o termo popular. Fez o mesmo com “ideologia”. Por burguesia, entendo aquele extrato da sociedade que se julga vencedora e merecedora do seu status econômico e social. Seus integrantes se comportam da mesma forma de há 200 anos, quando se solidificou como classe dirigente nos sistemas liberais. Seus valores contaminaram até mesmo a arte, industrializando-a, higienizando-a, tornando-a palatável para o gosto médio, construindo um contraponto para as vanguardas, estas, sim, revolucionárias. Na sequência, encaminharam leis, classificaram livros, autores, sistemas, gosto, comportamentos, tabus e os solidificaram como autenticamente louváveis e merecedores de adesão. A burguesia fez, portanto, a revolução moderna, mas morre de medo de outra que possa destroná-la. Cazuza clamava na sua música: “Enquanto houver burguesia, não vai haver poesia”” Acusado de ser um representante burguês da burguesia, se perguntavam todos: como pode falar mal de burguesia fazendo parte dela? É que burguesia e burguês são valores abstratos, e não um status estacionado numa pessoa.
Ilustra o aspecto caricatural da burguesia e do burguês o fetiche do gosto. Serve de exemplo o episódio no restaurante americano em que o garçom, por engano, trocou de mesa um vinho de R$ 100 por outro de R$ 11.200. Os clientes beberam, pagaram e nada perceberam — o que dá bem uma ideia do que é o gosto quando é falso, imposto, etiquetado, publicizado e transmitido socialmente. O restaurante percebeu o engano e decidiu não cobrar nada pelas garrafas. A identidade dos envolvidos deve ter sido preservada — porque isso seria uma vergonha pública, coisa de que o burguês se afasta.
Também eu vivi, só que no âmbito doméstico, situação similar. Ganhamos de um aluno podre de rico um vinho que custava R$ 600. Chequei num site o valor: isso mesmo. Guardei-o na geladeira para uma ocasião especial junto com outras garrafas. Um belo dia de bebedeira, quando me dei conta, já tinha bebido meia garrafa do precioso — e nem Tchum! Não vi diferença justificada de outros de ínfimo valor adquiridos na rede Queijão.
Debitei o descalabro a minha completa ignorância de vinhos e fiquei quieto. O estágio em que me encontro de apreciador chegou até ao ponto de identificar e rejeitar pelo cheiro (aroma) e sabor apenas a má qualidade de um Sangue de Boi (aquele de garrafões de 5 litros), um Cantina da Serra e um Pérgola, vinhos de supermercado que custam de R$ 10 a R$ 12. Como apreciador de vinhos, não passei da quinta série.
A figura do apreciador de vinho é bem caricatural quando, numa roda de conversa, ele começa a falar, no perfeito jargão dos enólogos, sobre as qualidades de tal ou qual vinho. Algumas das palavras usadas o descrevem como estruturado, frutado, amadeirado, elegante ou austero, e que harmoniza com tal ou qual tipo de queijo, carnes, etc.
Criado majoritariamente na cerveja, eu tenho as minhas marcas prediletas e risquei de minha geladeira muitas outras ordinárias. Na guerra do Iraque, combatendo no deserto escaldante há um mês, não rejeitaria a oferta de uma Brahma, uma Skol ou uma Itaipava geladíssima. Não seria fresco a esse ponto. Mas, passada a guerra, voltaria para as minhas de devoção, desde que grafado no rótulo “Puro Malte”. Como se vê, o sentimento burguês habita qualquer alma.
Já passei vergonha não confessada nem expressada quando minha amiga belga me trouxe chocolates belgas e os achei iguaizinhos aos da Garoto e da Laka. Sim, vou precisar reencarnar outro, melhor, mais refinado, para apreciar chocolates nórdicos! Por enquanto, eles são apenas torrões abusivos de coisa doce, que não me agradam o paladar.
É bem caricatural a exigência de gosto das classes. Elas falam das marcas ora como coisa trivial, ora como sonho de consumo distante, felizes por poderem usufruir delas como hábito normal, ou infelizes quando não. O fascínio das marcas é um lugar imaginário em que ricos e pobres se encontram. A burguesia é um estado de ser, e não apenas de ter, no caso, recursos econômicos e trânsito social. Existe pobre burguês. Há hoje um exército deles, quando lutam a vida inteira por um pertencimento social como único valor possível. A febre do consumo e de comando atinge a qualquer um — independentemente de classe. No caso, há o real burguês de comando, sendo que os demais apenas o apoiam como ídolo.
Há, no nosso cotidiano, uma diversidade impressionante de valores veiculados como definitivos, e não nos damos conta de que é a revolução de 200 anos atrás se mantendo ativa.

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