O QUE FICOU PARA TRÁS — O terror é um gênero que tem na construção do medo a sua principal ferramenta, e por isso alguns de seus maiores clássicos abordam questões sociais que dialogam direto com o espectador, seja como pano de fundo ou como elemento principal, criando alegorias que funcionam dentro da proposta, e tornando assim o filme atual e relevante.
Nos últimos anos, o filme que mais chamou a atenção para esse aspecto foi “Corra”, de Jordan Peele. Um filme excelente que tem o racismo como ponto central, sendo mais relevante que muitas das obras lançadas naquela temporada. Desde então, alguns filmes têm resgatado essa característica, e um dos filmes mais atuais e impactantes desta temporada é uma produção inglesa que chega sem muito alarde ao streaming.
“O que ficou para trás” é um longa que traz a imigração como ponto principal. Um tema delicado, pesado, pouco explorado pelo gênero e que traz ao filme um senso de realidade assustador.
Na trama, um casal foge da guerra civil no Sudão do Sul e, após um acidente na travessia pelo mar, perde a sua filha. Chegando a Inglaterra, o casal passa um período em um centro de detenção e, posteriormente “ganha direito” a uma casa em estado deplorável no subúrbio de Londres, tendo uma série de restrições absurdamente limitantes que eles precisam seguir para não perderem aquela condição.
Após um tempo tentando se estabelecer, coisas estranhas começam a acontecer na casa, levando o casal ao limite na vivência em uma nova realidade, com todas as suas dificuldades, os preconceitos, e precisando lidar com traumas e com a culpa por tudo o que foi vivido e deixado para trás.
A obra é escrita pelo diretor Remi Weekes (em seu primeiro longa), por Felicity Evans e Toby Venables, um trio de currículo curto, mas que mostra uma qualidade que impressiona ao trabalhar de forma econômica, conseguindo equilibrar com muita competência o tema da imigração e as manifestações que afetam o casal.
O roteiro tem diálogos poderosos, muito eficientes em expressar as sensações e sentimentos dos personagens, mas sem nunca serem expositivos, representando toda a dor daquele casal e da situação de todo imigrante. O filme trabalha uma dinâmica interessante entre o casal protagonista, ao trazer Bol (Sope Dirisu) como um homem que quer abraçar aquela cultura, tentando recomeçar a vida do zero, deixando toda a luta e traumas no passado. Já Rial (Wunmi Mosaku) busca manter as tradições de sua terra, seja através das roupas, da culinária ou nas forma de comer. Escolhas que trazem um conflito natural e funcionam para minar a relação em um momento difícil.
O filme foge dos clichês do gênero ao levar o terror para uma habitação simples, pequena, bem diferente das grandes mansões, que são muito comuns em filmes desse tipo. O filme faz uso de efeitos práticos em sua grande maioria, permitindo uma sensação real de ameaça. Ao trazer o terror para um casal sudanês, o longa tem uma estética diferente, que funciona muito bem e dá a ele um visual original.
O maior acerto do filme é o de não abandonar a questão da imigração depois que começam as manifestações. Essa seria uma escolha preguiçosa, muito comum, mas Weekes e seus parceiros trabalham toda a complexidade da situação junto ao terror, de forma crescente, mostrando que a realidade vivida por eles é mais opressora, assustadora e violenta que qualquer tipo de manifestação sobrenatural.
O filme causa tensão com muito pouco, mantendo o casal e o espectador apreensivos o tempo todo, seja dentro ou fora da casa. São diferentes tipos de ameaças que têm ligação direta com a forma com que cada um deles aceita a nova realidade e, principalmente, com que lida com os seus traumas e culpas.
“O que ficou para trás” é uma das maiores surpresas do ano. Extremamente atual, com ótimas atuações, ótimos diálogos, é um filme curto, econômico, mas muito bem construído, que usa essas características para criar uma narrativa angustiante, provocando a reflexão e expondo problemas de um mundo cada vez mais assustador.