Pensador é uma categoria de intelectual interessante. Ele não necessariamente pesquisa, investiga ou consegue uma formação técnica como o médico ou o engenheiro, por exemplo. Ele lê e pensa. Ou pensa e lê. Ou faz as duas coisas. Não que as outras pessoas não leiam e pensem. Mas o pensador é alguém que se confunde com o filósofo. É aquele especialista em assuntos gerais, buscando tratá-los com profundidade, embora nem sempre consiga. Pensador e intelectual acabam se equivalendo.
Eles podem falar de cosmologia sem serem astrônomos. Ou de geologia sem serem geólogos. De biologia sem serem biólogos. De sociedades humanas sem serem sociólogos e historiadores. De economia sem serem economistas. Claro que eles não abordam os objetos dessas ciências com o embasamento daqueles que nelas são formados. Mas eles são necessários por resistirem a um mundo que se especializa cada vez mais. Eles funcionam como pontes entre os especialistas e o conjunto destes com o leigo, muito embora não sejam muito felizes em falar simples. Há os que tentam uma fala fácil e acabam se tornando pops. Há os que buscam popularidade falando difícil para serem respeitados.
E os pensadores gostam de se posicionar diante de questões que emergem, embora nem sempre revelem clareza. Gostam de aparecer como aqueles que decifram a realidade e apontam caminhos. Eles não gostam de reconhecer fraquezas. Não admitem que o mundo esteja cada vez mais complexo e que não existe solução factível para ele. Eles não poderiam silenciar diante da pandemia causada pela Covid-19. Nada de esperar a crise passar, mas se posicionar quanto a ela no seu curso. Já que gosto e tento ser um pensador, dediquei-me a ler as entrevistas e os livros que pensadores publicaram durante a crise global, pois eu também quero publicar alguma reflexão sobre ela.
Em ordem alfabética começo com Giorgio Agamben, pensador italiano contemporâneo que se manifestou por um artigo e por desculpas. Quando a pandemia chegou à Itália, os governos locais demoraram a tomar medidas de isolamento físico e fechamento da economia. Agamben é um filósofo de esquerda que zela por uma democracia absoluta. Ele entendeu que o vírus não causava mais que uma gripe, e que os governos estavam usando a pandemia para intervir no Estado, criando uma situação de exceção. Depois, redimiu-se. Todos nós erramos em nossas avaliações e nos engrandecemos em reconhecer o erro. Mas a avaliação inicial de um pensador do nível de Agamben foi muito primária. Não existe Estado, por mais democrático que seja, capaz de enfrentar algum problema grave, como uma guerra ou uma epidemia, sem adotar medidas de exceção em defesa da população.
Ele agora está prestes a lançar o livro eletrônico “Reflexões sobre a peste” (São Paulo: Boitempo, 2020), exagerando para o outro lado: a pandemia exacerbou o individualismo e está levando as pessoas a pensarem somente em si de forma instintiva.
Outro pensador a se manifestar foi o judeu norte-americano Noam Chomski. Publicou-se dele, no Brasil, o livro “Internacionalismo ou extinção” (São Paulo: Planeta, 2020), lançado nos Estados Unidos em 2018. Portanto, antes da pandemia. Mas, na edição brasileira, foi incluída uma entrevista sua sobre a virose em que ele considera Trump um bufão que acredita na ideia de que o destino do país e do mundo está em suas mãos. Ele identifica três ameaças para o mundo: uma guerra nuclear, o aquecimento global e a deterioração da democracia. E enfatiza que só a democracia é capaz de enfrentar a pandemia, mas agora adotando-se uma mobilização de guerra. De longa data, Chomsky arremete contra o capitalismo, o grande capital e a indústria farmacêutica.
Dois caminhos são divisados por ele. “As opções variam desde a instalação de Estados extremamente brutais e autoritários, que buscarão adotar uma forma ainda mais selvagem de neoliberalismo (o medo inicial de Agamben — Observação minha), até a reconstrução radical da sociedade em termos mais humanos, preocupada com necessidades humanas em detrimento do lucro privado.” Da minha parte, não creio que a pandemia levará a um Estado mais interessado no bem público.
Yuval Noah Harari, historiador judeu bastante conhecido pelos livros “Homo Deus” e “Sapiens”, escreveu artigos e concedeu entrevistas posicionando-se sobre a atual pandemia. Todos eles foram reunidos no livrinho “Notas sobre a pandemia” (São Paulo: Companhia das Letras, 2020). Harari já declarou ser um liberal. Isso não significa ser neoliberal. Ele é responsável em suas posições. Doou os ganhos financeiros com a venda de seu livro no Brasil ao combate à pandemia. Ele entende que, num momento crítico como este, a humanidade deve deixar de lado o nacionalismo exacerbado e isolacionista para adotar uma atitude internacionalista. Quanto a isto, ele é claro: “o isolacionismo prolongado conduzirá ao colapso econômico sem oferecer nenhuma proteção real contra doenças infecciosas.”
Sua percepção também mostra o perigo que representam os contatos promíscuos da humanidade com a natureza: “A humanidade precisa vigiar as fronteiras entre o mundo dos humanos e a esfera dos vírus. Há, no planeta Terra, uma abundância de vírus, e eles estão em constante evolução graças a mutações genéticas.” Ao condenar posturas políticas irresponsáveis, parece que o alvo é Donald Trump. Acrescenta que “estamos diante de duas escolhas. A primeira se dá entre vigilância totalitária e empoderamento do cidadão; a segunda, entre isolamento nacionalista e solidariedade global.” Ele é antipático a posturas conformistas das pandemias anteriores, que encaravam a morte como algo inevitável. Agora, a ciência se mostra muito avançada, não para impedir a morte, mas para evitá-la sempre que possível.
No mais, ele insiste em dizer que crises sempre representam oportunidades. Pensamento antigo. Para os chineses, o ideograma que representa crise tem como componentes os ideogramas de oportunidade e risco. Em história, não há mudança por escolha individual. As mudanças sempre ocorrem por decisões coletivas. Mais por necessidade que por racionalidade. A pandemia é tanto uma oportunidade de mudança quanto risco de se acentuar mais ainda as condições que a propiciaram. Este aspecto não foi visto por Harari.
Era de se esperar que Bruno Latour se manifestasse sobre a pandemia. Tardiamente, ele percebeu a gravidade da crise ambiental global da atualidade. Ele cresceu no mundo da ciência, mas parece ser um oportunista na questão ambiental porque é muito confuso em seus escritos e pretende ser uma voz, senão a voz, de liderança. Seus conceitos são questionáveis, além de fazer parte de um grupo do qual deseja ser expoente. No seu livro “Onde aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno” (Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020), a questão central é uma análise confusa da crise ambiental atual que não convém discutir agora.
No final do livro, ele acrescentou um texto sobre a pandemia com um questionário. Dirige-se, nas perguntas, a um entrevistado neutro, esperando que as respostas dadas revelem que todos desejam mudanças profundas nos rumos do mundo. Esse desejo de que todos tenham a mesma resposta — a resposta do autor — revela imperdoável ingenuidade de um pensador maduro e incensado pelos seus pares.
Michel Maffesoli é filósofo conhecido por proclamar o fim da modernidade e o advento da pós-modernidade. O prefixo pós é sempre problemático por não indicar conteúdo. Existe muita análise da modernidade. Ela é marcada pelo paradigma mecanicista humanista. Esse paradigma está sendo contestado pelo paradigma naturalista organicista contemporâneo, com base no avanço da ciência. Não parece que a pós-modernidade de Maffesoli e outros se insira nesse novo paradigma. A questão central da pós-modernidade é mostrar que os grandes relatos explicativos e emancipatórios da modernidade se esgotaram. Vivemos agora a era dos pequenos relatos, dos afetos, da amizade, dos movimentos de curto prazo.
Maffesoli anunciou que estava prestes a lançar um novo livro, mas dele conto apenas com uma entrevista. Nela, o autor observa que pandemias como a atual eclodiram no final de sonoros momentos históricos. A peste do século II marcou o fim do Império Romano. A Peste Negra marcou o fim da Idade Média. A Gripe Espanhola assinalou o fim da Europa como centro do mundo, e a atual pandemia está contribuindo para um mundo pós-moderno, em que haja solidariedade, pequenos gestos de afeto, como os das pessoas que foram para as janelas aplaudir os médicos e executar músicas. Devemos pensar muito sobre aqueles intelectuais que captam uma tendência social, apegam-se a ela, acreditam que ela deve se aprofundar e a veem em toda a sua volta ou em lugares distantes. Tais acontecimentos da vida cotidiana são vistos por outro pensador de maneira distinta, como sinais de algo distinto. Em outras palavras, quem se apega a uma concepção, acredita que eventos simples estão a endossá-la.
Não estranharei se o leitor que me conhece disser que sou tendencioso com relação a Edgar Morin. Sim, de todos, considero-o o mais lúcido, a despeito dos seus 99 anos. Não louvo a sua lucidez longeva por admirá-lo, mas, ao contrário, admiro-o por ver nele um realismo esperançoso, algo que não percebo nos outros. Em primeiro lugar, ele desconfia de si mesmo, das suas avaliações. Em segundo lugar, ele desconfia de verdades. Estranha que cientistas e médicos tenham certezas quando a ciência só é científica se refutável. Foi o que ele manifestou numa entrevista e depois num debate virtual. Sabemos pouco sobre o vírus. Estamos aprendendo sobre eles. Já erramos bastante. O vírus tem se saído muito bem enquanto vírus. Sobretudo com a ajuda de políticos confusos, incompetentes e negacionistas. Morin não alimenta devaneios. Entende que a sociedade perfeita é aquela que mais atende a todos, mas contém imperfeições.
Não é assim com o marxista esloveno Slavoj iek. Ele foi dos primeiros a lançar um livro com suas reflexões a respeito da virose, “Pandemia: covid-19 e a reinvenção do comunismo” (São Paulo: Boitempo, 2020), que vai da origem da infecção às transformações que gostaria de ver no mundo, talvez até acreditando na sua emergência. Rejeita tanto o regime político chinês quanto o governo de Donald Trump. Ele que, como bom comunista, apostou em Barak Obama como um passo em direção a uma democracia marxista, deve ter se sentido muito frustrado com a eleição de Trump. Vê, em certas medidas deste presidente, atitudes de um governo intervencionista na economia. Na verdade, não se pode esperar de nenhum governante mundial um gesto em direção a uma democracia comunista. No máximo, o que se espera é o fracasso do neoliberalismo diante dos problemas sociais e ambientais crescentes e o retorno de um Estado de Bem-Estar social.
Por fim, comento o livro “Deus e a pandemia” (Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2020), do teólogo protestante N. T. Wright. Ele não se pergunta sobre a origem do vírus e sobre os desígnios de Deus. Será o vírus criatura de Deus? Será ele enviado por Deus como castigo? Terá Deus o deixado passar como um sinal de que a humanidade deve corrigir rumos? O autor se concentra em mostrar o que o cristão deve fazer diante da pandemia recorrendo à Bíblia. Ele compara os cristãos aos estoicos. Para estes, todo acontecimento está pré-programado para acontecer. Você não pode mudar esse fato; apenas aprenda a se enquadrar nele. Com os epicuristas, que “ofereciam um ponto de vista alternativo: tudo é aleatório. Você não pode fazer nada a respeito. Procure se acomodar o máximo possível.” Com os platônicos, para os quais “a vida atual é apenas uma sombra da realidade. Coisas ruins acontecem aqui, mas estamos destinados a um mundo diferente.” Os cristãos, por sua vez, tinham uma atitude ativa: ficavam entre os enfermos e os ajudavam.
Trata-se de simplificação. Os não-cristãos desenvolveram conhecimentos científicos para a época, tanto no ocidente quanto no oriente. Já os cristãos não se importavam em morrer, pois contavam com a salvação em outro mundo.