“O património não é uma velharia. É condição de futuro”. Li essa frase em um artigo publicado pelo professor, arqueólogo, historiador e museólogo Jorge Custódio. Logo me lembrei da música “Cabô, meu pai”, cantada por Beth Carvalho, que, em um de seus versos, declara que “Futuro é pra quem lembrar”. Fiquei pensando nessa viagem temporal entre passado e futuro. Chegarmos a um tempo futuro é a condição para afirmar que temos um patrimônio construído em um passado. Dentro dessa premissa, convido a refletir um pouco sobre o nosso patrimônio.
Na década de 70 do século passado, com o crescimento da produção industrial, da poluição e da pobreza, as nações começaram a se preocupar e a pensar em desenvolvimento sustentável, onde o equilíbrio ambiental fizesse par com a justiça social. Para alcançar tal objetivo, começaram a ser desenvolvidos programas locais e regionais com vistas à busca de maior equidade social. A partir de então, observamos o respeito aos saberes das populações locais, em atividades econômicas de pesca, agricultura e produção artesanal de arte ou equipamentos (redes de pesca, barcos, casas). As artes tradicionais estão associadas ao turismo urbano, uma das grandes indústrias em expansão nos anos 80/90, que puderam e podem apresentar um diferencial importante para a manutenção das economias locais e regionais, desde que estejam dentro das regras do mercado global (informacional). Contudo, é sempre bom lembrar que a história da humanidade é feita de transformações, de mudanças que muitas vezes não são percebidas de imediato, de tão sutis.
Das danças populares da nossa região, a Mana Chica parece estar se revivendo através de grupos para folclóricos; o Jongo se revitaliza a partir do reforço dos grupos de matrizes africanas, ligados aos quilombolas e aos grupos de “Movimento sem Terra”, sendo sua concentração espacialmente em Guarus, Parque Lebret, Novo Mundo e Santa Rosa. Já as Quadrilhas Juninas, muitas ainda guardam os modelos tradicionais de dança, canto e passos da nossa matriz portuguesa. Porém, algumas apresentam novos modelos, seja no ritmo funk com as letras tradicionais, seja nas roupas temáticas que acompanham os enredos que se diferem anualmente, ou nos cenários ricamente montados. Essas quadrilhas se proliferam em bairros do subdistrito de Guarus (Parque Novo Mundo), Ururaí, Goitacazes e Santo Amaro, não sendo registradas em outros distritos.
Dos folguedos, o Samba, os Bois Pintadinhos e os Bois de Samba são as manifestações mais complexas, envolvendo um grande número de componentes, que nem sempre estão fortemente ligados à escola de samba ou ao bairro, mas são atraídos por essas manifestações na época do Carnaval.
Temos identificado um único grupo de foliões da Folia de Reis que se reúnem em determinada época para essa manifestação. Ou seja, como tais grupos cantam em louvor ao nascimento de Jesus, eles só não podem se manifestar durante a quaresma. Um dos motivos apontados em alguns bairros para o afastamento dos foliões e o consequente abandono dessa manifestação foi a proibição pelo tráfico de drogas, pois esses grupos folclóricos costumam andar de casa em casa durante toda uma noite, o que causa temor em ambos os grupos sociais. O outro fato foi o esgarçamento da malha urbana, dificultando o reconhecimento dos foliões desses novos espaços.
Entre os jogos, a Corrida de Cancha Reta é comum acontecer, aos domingos, na praia do Farol de São Thomé e no Caboio, podendo também ocorrer junto das Festas de Laço, muito populares e concorridas na Baixada Campista. As Rinhas de Galo, apesar de proibidas, ainda podem ser encontradas em Baixa Grande, Retiro, Farol de São Thomé, Mineiros, Goitacazes, Tocos e Beira do Taí. Temos registrados grupos de Capoeira na Penha, Chatuba, Fazendinha, Jóquei, Matadouro, Cidade Luz, Aldeia, Nogueira, Santa Rosa, Jardim Carioca, Centro e nos distritos de Tócos e Goitacazes. De todos os grupos, são os melhores estruturados, os mais urbanizados.
O artesanato é rico e variado, oferecendo trabalhos de linha (renda, crochê, bordados de marca ou ponto de cruz), de tecido (flores, bonecas), de fibra (tapetes, esteiras, cestas, rede de pesca).
Na culinária, se destacam os doces, não difícil de explicar pela fartura do açúcar produzido localmente e de longa data. As receitas de influência portuguesa e africana são as mais encontradas. Algumas pouco conhecidas, como farti e língua de mulata. Já as receitas de medicamentos caseiros associados às rezas são tanto quanto as rezadeiras, misto de padre e médico e tão respeitadas quanto esses.
Se a língua é uma criação dos homens que a falam e a escrevem, a linguagem da Baixada é de especial criatividade, cujos fatos fonéticos contribuem para o aparecimento de formas variantes. É fácil reconhecer um campista pelo seu falar, usando o “não” para afirmar alguma coisa — “Não, eu não eu fiz isso” —, ou por palavras como enxugador, baleba e o famoso cabrunco.
Não abordei aqui toda a pluralidade do nosso patrimônio, tampouco os riscos que alguns estão correndo, mas deixo que cada um complemente com sua própria riqueza de saberes.