Como vencermos o asco e ler um romance em que o protagonista é um pedófilo consumado e que, durante cinco anos, faz sexo sistematicamente com uma adolescente desde quando a conheceu aos 12 anos de idade? Não. Não se trata de um romance pornográfico ou escatológico, nem precisamos tirá-lo das prateleiras das livrarias e bibliotecas, ou proibi-lo nas escolas.
A literatura tem os seus truques. Romances sobre taras sexuais, fetiches e sadomasoquismos existem, assim como romances açucarados para moças (e rapazes também!), antigamente vendidos até em bancas de jornais. O problema não é o tema, mas o tratamento literário, que retira a narrativa do lugar comum de mera história apenas narrada.
Ficcionalmente, “Lolita” (1955), de Wladimir Nabokov, é este livro, e se encaixa no grupo de grandes obras que vencem o espinhoso caminho de temáticas abjetas, incluindo a pedofilia, hoje, mais do que nunca, repudiada pelo grosso da sociedade, como crime previsto em lei. Trata-se de uma narrativa em que se encaixam corretamente os procedimentos ficcionais de uma temática delicada — o abuso de uma criança-adolescente por um adulto — e os corolários às vezes líricos, às vezes autocríticos, de um paixão obsessiva e tormentosa.
Humbert Humbert (o nome duplo do protagonista certamente tem um sentido) conhece Dolores Haze, nome de Lolita, quando aluga um quarto na casa de sua mãe Charlotte em Ramsdale, cidade interiorana do leste norte-americano, onde escolheu se isolar para escrever um livro. Decidido a não alugar o quarto após vistoriar a casa, muda de ideia assim que pousa os olhos na menina. Instalado na casa, inicia seus projetos de sedução daquela que ao longo da narrativa será a sua Lolita. Lo. Li. Ta. Ou sua “ninfeta”, nome tornado pejorativo por carregar a noção de adolescentes-meninas sexualizadas precocemente por quem guarda algo de pedófilo na sua natureza.
Alguns pontos que podem soar incômodos e orientar a leitura em favor do protagonista: a menina já experimentara o sexo antes do primeiro intercurso com o seu sedutor, se comportava com se tendo algum controle sobre a situação de assédio, e também por ter em Humbert Humbert a satisfação de seus próprios desejos.
A coisa é bem mais complicada. Para poder permanecer na casa e na família, Humbert Humbert cede à sedução de Charlotte, mãe de Lolita, e... casa-se com ela, dando início à outra metade de sua atividade sexual naquela casa, mas com seu desejo intensamente centrado e satisfeito com a sua agora enteada Lolita. Tendo descoberto as inclinações do marido para com a sua filha ao ler os diários de Humbert Humbert, Charlotte se precipita porta afora e é atropelada e morta na frente de casa. Tem início então a segunda parte do romance, a vida errante do “casal” de uma ponta a outra do país, com uma vívida descrição dos espaços onde se desenvolve o “american way of life” e de suas elucubrações morais, de pai adotivo e amante da menina órfã de pai e mãe.
“Lolita” é narrado em língua inglesa por um Nabokov que se iniciou na literatura em russo, sua língua materna. Nascido na Rússia imperial em 1899, de lá fugiu com a família 20 anos mais tarde por força dos efeitos da revolução bolchevique. Morou em Berlim, Londres e Paris, quando, em 1940, migrou para os Estados Unidos, onde deu continuidade à sua carreira literária, resultante agora de sua adaptação cultural.
O romance tem uma engenharia ficcional muito instigante, apresentando-se mesmo como um meta-romance, ou seja, um romance em que o autor considera como pertinentes à história os seus procedimentos e decisões sobre a forma de narrar, incluindo aí as constantes evocações ao leitor. Tem início com um prefácio, inserido como capítulo inicial, informando o leitor que o que se vai ler resulta do tratamento literário dos manuscritos deixados por um certo Humbert Humbert, que havia morrido na prisão de trombose coronariana, enquanto aguardava seu julgamento. Enquanto estava preso por um crime que julgamos ser o de pedofilia, escreveu toda a sua trajetória, desde antes de ter chegado aos Estados Unidos vindo da Europa, onde havia desfeito seu casamento, até o final do seu controle sobre Lolita. Seus manuscritos, com sabor ora de diário íntimo, ora de memorial, fazem um apelo frequente ao leitor, como se estivesse se defendendo, ao mesmo tempo que prestando contas daquilo que, mais do que uma prática pedófila, definia como paixão obsessiva ou, quando menos, amor. Recebido o tratamento editorial, é a história completa que o leitor tem em mãos, história que se explica como romance de um condenado.
Nabokov teve problemas para publicar o seu romance. Os editores alegavam pornografia, ou temática muito incômoda, que não valia a pena o risco. O cerco e a resistência foram vencidos com o tempo, e a extrema elaboração e tratamento literário logo vieram à tona . Hoje, “Lolita” é um dos romances mais autênticos de uma época em que a América moderna e capitalista é descoberta e traduzida em uma linguagem excepcionalmente lírica e surpreendente, em que a expressão vence o conteúdo incômodo.