Na Ribalta: Reflexões sobre a arte de atuar
Fernando Rossi 24/09/2020 17:57 - Atualizado em 24/09/2020 17:59
A experiência com artistas/ atrizes/atores indica que pouco adianta adaptar-se de modo submisso ao mundo socialmente construído por terceiros adultos (quando aportamos no mundo ele já está pronto, e quando tomamos ciência de que o estamos formando, se é que chegamos a tomar esta ciência, já é tarde). Ou desfrutamos ou nos frustramos com o mundo. O desfrute de viver é pessoal, e a observação de que nem todos desfrutam tem que ser óbvia. Dessa forma, algumas pessoas forçam a aparição de nova realidade via esquizofrenia ou fazendo arte.
O brincar criativo (ludus) é um modo de se enfrentar a realidade, de valorizar a alegria de estar vivo mesmo frente a mundo estranho. Frente ao cansaço da sujeição, o brincar com a realidade se apresenta como a possibilidade de criar, de colocar o tom pessoal na experiência, de rearranjar campos. O brincar com a realidade é construir novas realidades ou, no mínimo, executar novas leituras sobre a realidade media. Não apenas desmontar a pretensão narcísica, mas impregnar a realidade com o desejo. A realidade não será só tema de sujeição, mas de criação.
A atriz e o ator são os que se mostram munidos de segurança; tão firme segurança que impossibilita o acolhimento radical da loucura. Domina-se a nova realidade sem ser invadido por ela. Não sendo assim, não se é atriz ou ator, mas se é louco. Deve-se se abster do autoritarismo e da doutrinação e permitir a fruição, mesmo que aparentemente, desorganizada da obra que se quer representar ou viver no momento, ou seja, a peça. O ator e equipe se entregam ao que está acontecendo naquele momento, e, naquele momento, o que está acontecendo é vida, realidade, com ou sem plateia. A obra que se interpreta — ou que se vive no momento — é experiência para o ator e para a direção/equipe. Se não for possível experimentar este estado de relaxamento, esta condição de aprendizado ativamente passiva, ativamente expectante, de fato não há aprendizado algum, nem interpretação de nada, nem de vivência de coisa nenhuma.
A atriz/ator, frequentemente em silêncio, o artista não deve oferecer nem força, nem interpretação alguma, nem forçar poses ou gestos, mas viver o momento daquilo que se quer suposto representar. Não fazer de caso pensado é ser natural e se quer assim no palco.
A interpretação será aquilo que a plateia captar, de acordo com valores e conteúdos próprios, trazendo para si o valor que souber captar. Sempre dependeremos da inteligência da plateia. Não há como prever reações, a não ser que a plateia seja previsível, portanto, tola. A recompensa por esta retenção de interpretação é o fato de que o ator faz possível interpretação que se pensara da obra, reciclada, então, pela plateia. Neste caso, a direção/equipe deve trabalhar pela não-ação e pela espera, evitar qualquer atropelamento do ritmo da atriz/ator. O processo não é apenas ativo, não acontece apenas agindo. A ação, aliás, é marca da vida contemporânea — marca não rara ensandecida — e lembrar que ação é drama. Onde houver movimento há drama. Onde houver vida há drama.
O aprendizado vem também com o silenciar, que não significa parar, para ouvir/ouvir-se, deixando passar, deixando fluir, permitindo que atriz/ator se desarranjem, se desorganizem, para dos pedaços reerguerem a nave, o casebre, o palácio. A personagem verdadeira — não uma específica ou certa personagem, mas, a que surgirá dos véus, quase que por si — se constrói aí, onde não é tão necessária a defesa. É apenas em estado não integrado o criativo pode aparecer, emergir. Onde houver densidade o movimento é pífio. Onde houver fluidez pode haver vida.
Brincar e criar e atuar e criar a nova realidade, mesmo que momentânea realidade, que dure hora e meia, são, sobretudo, um modo de diretor/equipe se posicionarem diante da atriz/ator, esperando que possa brincar e criar com e através de seus conteúdos particulares, aprender com estes conteúdos e a partir destes conteúdos. Neste caso, não haverá recusa da condição prática humana, do empirismo humano, recusa marcada pelo comportamento defensivo. Diretor/equipe aceitam o conteúdo da atriz/ator, já que escolheram a estes para o trabalho; aceitam o caos e esperam, pacientes, o brincar criativo.

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