O diabo de cada dia — “O diabo de cada dia” parece, num primeiro momento, uma antologia de histórias que se entrecruzam e mantêm relação temática com a religião, a fé e a maldade das pessoas em uma região rural, bem ordinária, do interior dos Estados Unidos. Não por acaso, a história se passa entre a Segunda Guerra Mundial e a Guerra do Vietnã, dois períodos históricos que influenciaram fortemente a sociedade americana, numa época em que era vendida a ideia de que o mal estava além das fronteiras.
Abraçando sua origem literária através da narração feita pelo autor do livro “O mal nosso de cada dia”, de Donald Ray Pollock, a narração do filme tem um tom de contação de história. Funciona para acrescentar algumas informações e como ponte em determinados momentos da narrativa. Um artifício perigoso, mas que funciona justamente devido ao tom e ao sotaque empregados pelo narrador.
O roteiro, escrito pelo diretor Antônio Campos e seu irmão Paulo Campos, ambos filhos de pai brasileiro, usa a reunião de um culto de domingo como o momento perfeito para apresentar e juntar personagens, já explicitando alguns dos temas recorrentes ao longo do filme.
Narrando a história de duas gerações de duas famílias, que parecem herdar os problemas do passado, o filme é extremamente violento e funciona como uma forte crítica ao fanatismo religioso, muito forte em áreas mais conservadoras, característica ainda presente nos dias de hoje.
A região em que se passa a história e a época são habitadas por uma sociedade patriarcal muito temente a Deus. Uma sociedade onde as mulheres são totalmente passivas e veem na relação com os homens da igreja uma oportunidade de salvação. Já a maior parte dos homens tem uma relação destrutiva, com sua visão distorcida e muito particular de fé.
O filme tem um clima pesado, faz uso de cores dessaturadas, dando um aspecto de falta de vida aos ambientes. O design de produção é muito eficiente em situar a passagem de tempo através dos figurinos e cenários, mas sempre mantendo o aspecto desgastado, como se o tempo mudasse, mas os principais aspectos daquelas comunidades se mantivessem.
Chama a atenção o elenco recheado de grandes nomes, encabeçado por Tom Holland, Robert Pattinson, Jason Clark e Bill Skarsgard. Pattinson interpreta um pastor excêntrico; tem um estilo charmoso, uma mistura de Elvis com pastor, fazendo uma atuação que vem sendo muito elogiada. Mas, o tom caricatural do personagem, que é totalmente proposital, me incomodou, soou deslocado do restante da obra.
O grande destaque fica com Bill Skarsgard. Seu papel como o veterano de guerra Willard é o mais pesado do filme. Um personagem complexo, que carrega traumas da guerra e renega a religião, para depois criar um forte laço com a imagem da cruz, imagem esta fortemente relacionada com sua experiência no conflito.
Com um ritmo lento, um número grande de personagens (alguns totalmente desnecessários) e uma longa duração “O diabo de cada dia” não é uma experiência fácil, mas compensa pelos temas abordados e pelas boas atuações. O filme funciona como uma espécie de estudo entre as relações da fé e da violência, usando como recorte um período histórico que foi um hiato entre duas das guerras mais violentas daquele país.
A cena final sugere um encerramento cíclico, mostrando que a maldade é inerente ao ser humano — vai estar sempre presente —, e, de certa forma, o passado também.