Arthur Soffiati: Norte do Rio de Janeiro pelo enfoque da eco-história (I)
Arthur Soffiati 22/09/2020 13:55 - Atualizado em 22/09/2020 23:15
ntes dos europeus, os povos que chegaram primeiro à América alcançaram o território que hoje se convencionou chamar de regiões Norte e Noroeste do Rio de Janeiro, conhecendo melhor que nós os terrenos, os rios e as lagoas, a vegetação e sobretudo a fauna. Com a chegada dos europeus, esse território foi descrito em palavras e representado em mapas. A economia capitalista que então se instalava exigia transformações ambientais. Havia muita água e muita floresta para a agricultura e a pecuária. Cumpria dessecar e desmatar. Jogar água doce ao mar e obter madeira e lenha para as atividades econômicas. Ou simplesmente derrubar as matas com machado e fogo para obter terras livres destinadas a atividades até então desconhecidas pelos povos pioneiros.
Aspectos naturais
Em 1785, o capitão cartógrafo Manoel Martins do Couto Reis escreveu em seu relatório que o então Distrito dos Campos dos Goitacás, correspondente hoje ao Norte-Noroeste Fluminense, constituía-se de três terrenos: os planos, os ondulados e os montanhosos, sendo que os planos eram formados por aluviões e areia (Manuscritos de Manoel Martins do Couto Reis – 1785: Descrição geográfica, política e cronográfica do Distrito dos Campos Goitacazes. Campos dos Goytacazes: Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima; Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 2011). O militar da infantaria estava diante de uma escada. Um engenheiro começa a construir uma escadaria pelo degrau mais baixo, que passa a ser o mais antigo. Na região em pauta, a natureza começou a construir a escada pelo degrau mais alto, que é o mais antigo. Ele se formou em data anterior a 600 milhões de anos. É a serra, com rios que descem de forma rápida, formando quedas d’água e bacias em seu curso. O substrato desgastado constituiu solos propícios a florestas complexas. Trata-se da Mata Atlântica em sua forma densa, com florestas luxuriantes que retêm água das chuvas e regulam o regime hídrico. A esse terreno, Alberto Ribeiro Lamego dedicou o livro “O homem e a serra” (Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística/Conselho Nacional de Geografia, 1950).
O segundo terreno constitui-se dos tabuleiros, uma formação com mais de 5 milhões de anos que se estende do Amapá ao Norte do Rio de Janeiro. Ele é ondulado, com colinas de baixa altitude e depressões. Não existem neles formações pedregosas, como na serra. Apenas concreções ferruginosas. Os tabuleiros constituem uma zona de transição entre a serra e a planície. Da serra, eles têm as florestas. É a mesma Mata Atlântica adaptada a um regime climático com estações relativamente marcadas. Nos tabuleiros, a Mata Atlântica assume a caraterística estacional semidecidual. As florestas sofrem influência das estações do ano. Daí a denominação de estacional. Na estação seca, elas perdem de 20% a 50% das folhas. Daí a característica semidecidual, pois a decidual chega a perder 80% das folhas na estação seca. Da planície, os tabuleiros têm lagoas, geralmente instaladas nas depressões. Não existe nenhum livro específico sobre os tabuleiros pelo aspecto social, talvez por serem eles considerados extensão serrana.
No seu curso final, o rio Paraíba do Sul separa duas províncias geológicas. Na margem esquerda ficam os tabuleiros. Na margem direita, alastra-se a planície. Esta se constituiu nos últimos cinco mil anos com sedimentos argilosos transportados pelos rios que descem da serra e dos tabuleiros e com areia transportada pelas correntes marinhas e retida pelos rios. A planície é, então, fluviomarinha. Do rio Paraíba do Sul para a linha costeira, a declividade pode ser fixada em 10 metros para 0 em, pelo menos, 50 quilômetros de extensão. É a maior planície do Rio de Janeiro. As águas que descem da serra e dos tabuleiros perdem velocidade na planície e formam grandes e incontáveis lagoas. A planície se formou em torno de dois eixos hídricos: o rio Paraíba do Sul e o complexo sistema Ururaí, formado pelos rios Imbé (que recolhe pequenos rios que descem da vertente atlântica da serra) e Urubu, formam a lagoa de Cima, que deflui pelo rio Ururaí, que entra na grande lagoa Feia, que recebe também o rio Macabu. A lagoa deflui pelo rio Iguaçu, que desemboca(va) no mar.
O eixo Paraíba do Sul corre em nível ligeiramente mais alto que o eixo Ururaí. Dessa diferença decorre que os transbordamentos do Paraíba do Sul defluem para o sistema Ururaí. Originalmente, após formada a planície, existia uma ligação natural entre os dois eixos constituída de defluentes. Com as cheias do Paraíba do Sul, as águas excedentes defluíam para o sistema Ururaí. Ambos os eixos conduziam água do continente para o mar. O Paraíba do Sul desembocava no mar por cinco braços. Dois (os de Atafona e de Gargaú) eram permanentes. Três (os de Gruçaí, Iquipari e Iguaçu) eram auxiliares, só ativados nas cheias.
No setor aluvial da planície, a excessiva umidade inibiu a formação de florestas, o que Couto Reis notou claramente. Ele escreveu que as florestas se desenvolveram nas serras e nos tabuleiros, mas não na planície aluvial. Nela, a vegetação que a umidade permitiu se desenvolver foi classificada como pioneira de influência fluvial. É constituída de plantas herbáceas e arbustivas de água doce, com raras espécies de porte arbóreo, como a tabebuia, por exemplo. Mesmo assim, pouco desenvolvidas. No setor marinho das restingas, o substrato arenoso absorve mais a umidade, permitindo um tipo de vegetação classificada de pioneira de influência marinha. Ela é classificada por zonas que vão de plantas, herbáceas, passando por arbustivas alcançando porte arbóreo. A salinidade conduzida pelo vento é o mais forte fator limitante da vegetação. Alberto Ribeiro Lamego entendeu que havia dois ambientes socioambientais na planície: o brejo (parte aluvial) e a restinga (parte arenosa). A eles, dedicou os livros “O homem e o brejo” (Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística/Conselho Nacional de Geografia, 1945) e “O homem e a restinga” (Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística/Conselho Nacional de Geografia, 1946). Para ele, o brejo representava um desafio que obteve como resposta a civilização campista. Por outro lado, a restinga levava o ser humano e até a vegetação à indolência.
Formação da planície fluviomarinha
Proclamam os epistemólogos que uma tese só é científica se for refutável. Em ciência não há dogmas. O conhecimento científico avança por desconstruções e reconstruções. A primeira tese consistente sobre a formação da restinga fluviomarinha do Norte Fluminense foi formulada por Alberto Ribeiro Lamego em 1945-55. O ponto inicial dela foi um continente diante de um mar raso progressivamente aterrado por sedimentos carreados pelo rio Paraíba do Sul. Ao mesmo tempo em que constrói uma planície, o rio cria um leito sobre ela que desemboca na altura do futuro cabo de São Tomé por um delta do tipo pé de ganso, com braços longos. No terceiro estágio, o leito do rio se bifurca em ponto distante do mar, dirigindo-se o novo braço para a foz atual. Por fim, o primeiro delta vai sendo colmatado e o rio se estabiliza no segundo braço que entra no mar por dois canais: Atafona e Gargaú (“O homem e o brejo” e “O homem e a restinga. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística/Conselho Nacional de Geografia, 1945-46).
A tese mais recente, formulada em diversos artigos e consolidada em livro em 1997, foi formulada por quatro geólogos (MARTIN, Louis; SUGUIO, Kenitiro; DOMINGUEZ, José Maria Landim e FLEXOR, Jean-Marie. “Geologia do Quaternário costeiro do litoral do norte do Rio de Janeiro e do Espírito Santo”. Belo Horizonte: CPRM, 1997). O ponto inicial da formação da planície é um grande continente com dimensões maiores que o atual. Portanto, a linha de costa avançava mais no mar que a atual. O segundo ponto é a transgressão marinha (avanço do mar sobre o continente) entre 7.000 e 5.100 anos antes do presente (AP) até alcançar as bordas da zona serrana em Itereré e formar uma laguna cercada de ilhas. Era, na verdade, uma semilaguna aberta para o mar na qual desembocavam os rios Paraíba do Sul, Muriaé, Imbé e Macabu. No terceiro momento, o mar começou a recuar (regressão marinha) em 5.100 AP. Os rios avançaram (progradação) transportando sedimentos oriundos da zona serrana e dos tabuleiros. O momento inicial da formação da planície corresponde aos primórdios das civilizações mesopotâmica e egípcia, as mais antigas conhecidas. Formou-se, assim, uma nova extensão do continente com sedimentos de origem continental complementado por areia transportada pelas correntes marinha e retidas pelo espigão hídrico dos rios Paraíba do Sul e do Iguaçu. A restinga de Jurubatiba já existia, datando a sua formação de 120 mil anos.
Examinando atentamente a planície em mapa geológico, nota-se a presença de duas unidades de tabuleiros: uma entre o rio Macaé e a lagoa Feia e outra entre os rios Paraíba do Sul e Itapemirim, separadas pela planície fluviomarinha. Pode-se aventar que a transgressão marinha iniciada em 7.000 anos AP invadiu uma grande unidade de tabuleiros pelo vale do Paraíba do Sul, criando uma unidade meridional e uma setentrional. Com a formação da planície, essas unidades ficaram separadas por uma formação geológica de idade mais recente. Examinando as duas unidades, nota-se que a conformação de ambas sugere uma ligação pretérita das duas. Além do mais, restam, na calha do Paraíba do Sul e sob a planície, remanescentes de tabuleiros.
Podemos, pois, afirmar que a nova conformação continental estava concluída em 2.500 anos AP, deixando claro que as dinâmicas continental e marinha continuaram operando mudanças, mas sem o registro de eventos monumentais.
Os povos nativos foram ocupando o novo continente à medida em que ele ia sendo construído, encontrando uma fartura tão grande de alimentos que a agricultura foi inibida. Podemos entender que esses povos, em sua maior parte, viviam em estado neolítico sem o recurso à agricultura, embora dominassem as técnicas do polimento da pedra e da fabricação de cerâmica. Paralelamente, na ilha maior do arquipélago de Santana, viveu um povo que se sustentava da coleta, mas não desenvolveu um modo de vida paleolítico típico também pela fartura de alimentos.

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