Afrânio Sobral: Nossa filha em Kiribati
Afrânio Sobral - Atualizado em 08/09/2020 17:40
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— Cíntia, assim que puder, mande notícias. Sua mãe e eu estamos apreensivos com sua viagem. Queremos saber se tudo correu bem.
— Desculpem a demora, mãe e pai queridos. O que eu fiz não foi uma viagem. Foi uma expedição a um mundo perdido. Bem que Alfred me disse que eu ficaria assustada com o voo. Eu também sabia. Aliás, vocês e todos da família sabiam e disseram que seria uma loucura. Tio Mauro chegou a comentar que não valia a pena casar com um homem que mora tão longe, por mais jovem, bonito e rico que ele fosse, kkkkk. Mas, durante e depois da viagem, eu caí na real. Imaginem o que é sair de Campos de ônibus e pegar um avião para São Paulo. Até aí, tudo bem. Mas, em seguida embarcar para Porto Alegre e de lá para Santiago do Chile. Já fiz voos mais longos. Já atravessei o oceano Atlântico quando viajei para a Europa. Foram 11 horas dentro de um avião. Senti medo ao ver o oceano embaixo de mim. Mas nada se compara ao que vivi há uma semana. Saí de Santiago em direção a Auckland, na Nova Zelândia.
O Atlântico é café pequeno perto do Pacífico. Depois de dormir em Santiago, levantamos voo. Aquele oceano mete medo. Eu olhava pra baixo e não via nenhuma ilha. E ele não acabava nunca. Eu dormia. Quando acordava, lá estava ele. Eu comia. Quando acabava, lá estava ele. E se o avião caísse? Mesmo que a gente se salvasse, ninguém chegaria a tempo para nos socorrer. Eu imaginava meu corpo dentro de um tubarão. De nada serviu tudo o que aprendi de geografia na faculdade. Nada do que fiz antes nos meus 30 anos se compara ao que eu vivi nessa viagem louca. Isso não é para humanos, mas para robôs.
Auckland finalmente. Finalmente nada. Você dorme e, no dia seguinte, pega um avião menor até Kiribati. Ao todo, são 2 dias e 3 horas de viagem. Dizem que nós estamos vivendo num mundo em que as distâncias se encurtaram. Puxa! Juro por Deus que eu preferia viajar de navio. Finalmente, cheguei ao aeroporto de Bonriki, onde Alfred me esperava. Quando desci do avião, não aguentei. Corri para ele e chorei muito. Ele pensou que fosse de emoção pelo reencontro. Na verdade, chorei por me sentir segura. Em terra, de onde eu nunca deveria ter tirado os pés. Desculpe essa longa mensagem. O sinal aqui não é muito bom. Tenho de aproveitar.
— Puxa, filha. Que loucura. Conheci duas moças que também se casaram assim como você. Elas foram passear na Europa e conheceram rapazes com quem acabaram se casando. Uma mora na Escócia, e outra, na Austrália. Por mais longe que sejam esses países, eles são conhecidos. Você também conheceu o Alfred na Europa, mas confesso que nunca tinha ouvido falar em Kiribati. Só depois procurei esse lugar no Google. Sua mãe chora muito. Ela sente muito a sua falta. Acha que nunca mais a verá. Que nunca conhecerá os netos se você tiver filhos. Acha que você nunca mais virá nos visitar. Não temos mais idade para enfrentar uma jornada como essa que você nos contou. Não temos condições de ir aí. Você está gostando? Sente saudades de nós?
— Mãe e pai queridos, estou escrevendo um e-mail porque o sinal aqui é bom na região, mas não tão bom para falar com o mundo, kkkkk. Estou rindo para não chorar de saudade daí. Ao sair do aeroporto, pegamos uma estrada asfaltada que liga as ilhas do arquipélago. Passamos por Bikenibeu, Eita, Banraeaba, Nanikai, Terawa Sul, que é a capital de Kiribati, e chegamos a Betia, onde Alfred mora. A casa dele é deslumbrante. Eu disse que gosto de sentir meus pés firmes na terra. Mas isso aqui não é terra. Parece mais uma piscina. Em certos pontos, parece que a estrada flutua sobre o mar. O arquipélago é um atol. O país é formado por 33 ilhas. Moramos numa que forma um cordão com outras. Se olho para o interior, vejo uma piscina. Se olho para fora, vejo o oceano aberto. A água é tão transparente que vejo tudo com nitidez. Parece que estou num aquário. Mas também não me sinto segura. Parece que isso tudo vai afundar.
E tem um montão de casas nessas ilhas frágeis. Isso aqui nunca deveria ter ninguém morando. Quando os europeus chegaram aqui, já tinha gente morando. Os povos nativos daqui partiram da Ásia e vieram navegando. Acho que eles eram doidos navegando em canoas frágeis. Aqui, eles se fixaram e passaram a viver de pesca. Estamos na Micronésia e na Polinésia. Continuo depois. Alfred chegou do trabalho.
— Que língua se fala aí? Pelo que vejo, é um país maluco. Sua mãe não para de chorar. Seu irmão Armando está na fazenda preparando os cavalos para a Exposição Agropecuária.
— Morrendo de saudade de vocês. Beijos pro Armando. Aí dá pra andar de cavalo. Por aqui, acho que ninguém sabe que bicho é esse. As ilhas que formam Kiribati foram conquistadas pelos ingleses. O capitão Davis as transformou em protetorado em 1892. Já tinha gente morando aqui. Mas sabe como eram os europeus, né? O arquipélago no fim do mundo recebeu o nome de Ilhas Gilbert no início do século XIX. A língua dos nativos passou a ser chamada de gilbertês. É a língua oficial do país, mas se fala muito o inglês também. Em nossa volta, existem ilhas pertencentes aos Estados Unidos e à França.
— Filha, e essa pandemia, heim? O vírus chegou aí? Vocês estão bem? Já chegou em Campos. Existem alguns casos confirmados. O Brasil está uma bagunça. Ninguém se entende. O presidente está brigando com governadores e prefeitos e dizendo que não há motivo para pânico, que a pandemia é uma gripezinha. Que ele tem histórico de atleta, que a doença não o assusta.
— Pai e mãe, casei em fevereiro e cheguei aqui nessa piscina natural no início de março. Logo depois, 10 países parecidos a este fecharam os aeroportos: Palau, Micronésia, Ilhas Marshall, Nauru, Ilhas Salomão, Tuvalu, Samoa, Vanuatu, Tonga e Kiribati. Estamos literalmente ilhados. Ninguém entra e ninguém sai. Estamos livres do vírus, mas também não está entrando o dinheiro dos turistas. A maioria vem da Austrália e da Nova Zelândia. Acho que os americanos e os europeus não sabem que existem esses países inviáveis. São lindos, mas muito inseguros. Os hotéis, restaurantes e comércio sofreram uma queda muito grande. Por mais que Alfred seja um executivo de uma firma importante de turismo, temo por ele. Mas ele, não. Diz que ocupa um cargo importante na empresa e que sempre haverá convite para trabalho se for despedido. Não sou otimista como ele. Até que se ele perdesse o emprego e fosse procurar outro na Austrália, na Nova Zelândia ou na Europa eu gostaria. Estaria mais perto do Brasil. Sem vírus, mas sem turistas e sem exportar pescado. Por esse lado, vocês podem ficar tranquilos.
— Querida filha, parece que só eu escrevo, mas sua mãe está aqui nas mensagens, de corpo, coração, alma e lágrimas. Hoje, seu colega e amigo Soffiati escreveu um artigo na Folha da Manhã dizendo que o novo coronavírus é a demonstração mais cabal da globalização, pois está presente em todos os países do mundo, por menores e mais escondidos que estejam. Pelo que você falou, ele está dizendo bobagem. Mando o link do artigo pra você ler. Talvez assim você não se sinta tão afastada de sua terra.
— Pai, Soff é só meu colega de profissão. Nós não trabalhamos juntos. Eu o conheço de uma excursão que ele fez com os professores e alunos do Nilo Peçanha na foz do Paraíba.Ele não deixa de ter razão. O vírus só não entrou aqui por decisão dos governos. Eles não são irresponsáveis como Trump e Bolsonaro. Eles sabem que a pandemia causaria muitas mortes numa população pequena. O sistema de saúde aqui é bom, mas não tem capacidade de atender muita gente. Se o vírus não entrou, a crise pousou aqui com tudo. A quebradeira é geral nos 10 países que falei. Pra fortalecer Soff, precisamos entender que a cultura daqui é de origem europeia. Quase todo mundo sabe falar inglês ao lado do gilbertês. Kiribati é muito diferente do Brasil, mas o país não me causa estranheza total. Estou numa Europa fora da Europa. O nível do mar está cada vez mais alto nas ilhas do Pacífico por causa do aquecimento global. Se aí a gente não se incomoda muito com isso, aqui as mudanças climáticas representam uma questão dramática para a população e os governantes. Todos eles reclamam muito na ONU. Pedem compensações aos países ricos, os principais responsáveis pelo problema. Mas ninguém lhes dá a devida atenção. O curioso é que existe país aqui desejando comprar terras em outro país mais sólido para não afundar. Isso também faz parte da globalização de que Soff fala no artigo dele.
Por falar em Soff, andei fazendo uns passeios por aqui e encontrei uma planta que ele vai gostar. É um mangue parecido com o que vi em Gargaú quando fizemos a excursão. Não lembro o nome dele, mas lembro que Soff falou que o mangue colonizou toda a região tropical do mundo muito antes que a gente aparecesse. Ele disse que o mangue globalizou a região tropical do mundo. Eu gostei dessa sacação. Acho que por isso guardei o que ele falou na minha lembrança. Tirei uma foto da planta que vou mandar para o e-mail dele. Eles aqui plantam mangue para conter a erosão do mar. Encontrei um grupo de nativos plantando esse mangue cheio de ramos sob supervisão de um biólogo. Conversei com ele no meu mau inglês. Ele entendeu. Perguntei a ele o nome científico do mangue porque Soff disse que o nome popular muda muito facilmente. O biólogo é nativo. Cursou biologia na Austrália. Me falou que o nome científico daquela planta é Rhizophora mucronata. Pedi a ele para escrever de forma correta.
Aliás, tenho feito contato com algumas amigas daí pela internet. É um jeito para não me sentir tão sozinha. O Alfred é ótimo, ele entende que a gente sinta falta dos parentes e amigos. Beijos para a mãe, você e Armando. Para meus sobrinhos e tios também. Para todos os amigos e amigas. Já estou chorando.
— Mãe e pai, eu aqui de novo. Esse país é incrível. Não apenas por ser um conjunto de ilhas frágeis e lindas. Parece mesmo o paraíso da Bíblia. Por isso, acho que, no máximo, elas podiam ser visitadas. Nunca habitadas. Talvez só pelos nativos, que chegaram aqui primeiro. Mas fiquei sabendo que Kiribati é o país mais oriental do mundo. Achei coisa de ocidental. Qual o ponto de referência tomado para essa conclusão? Se for Kiribati, o país mais próximo ao oriente podem ser Canadá, Estados Unidos e México. O mais distante pode ser a Austrália, que fica relativamente perto daqui. Mas, ficou convencionado e pronto.
Mas existe uma característica que independe de preconceito. Kiribati tem ilhas espalhadas pelos quatro hemisférios da Terra. Teoricamente, você pode botar um pé no hemisfério norte e outro no hemisfério sul. Um no hemisfério leste e outro no oeste. É o único país do mundo com terras (ou ilhas de coral) nos quatro hemisférios. E não dá pra gente dizer que é um país gigantesco como a Rússia ou o Brasil. Kiribati é um dos menores países do mundo. Mas não é só isso. Quando no oeste de Bairiki, uma das ilhas do país, é manhã de domingo, no leste de Kiribati é manhã de sábado. Aqui começam o dia e o ano novo.
Agora, ficou convencionado que o marco zero é a ilha Caroline, onde não mora ninguém. Dizem que o escritor Umberto Eco andou por uma dessas ilhas malucas para escrever seu romance “A ilha do dia anterior”.
— Eu gostaria de te visitar levando sua mãe, mas não temos mais idade para isso. Armando disse que vai até aí quando baixar saudade forte. Ele, Mariana e as crianças. Adorei as fotos que você nos mandou. O lugar é mesmo lindo, mas muito longe. Deus não podia ter feito esse arquipélago no litoral brasileiro? Kkkkk.
— Receberemos Armando, Mariana, Cristiano e Eneida com a maior alegria. Diga a eles que a casa é muito grande. Há muitos quartos. E só eu e Alfred moramos nessa mansão. Alfred está mais tranquilo porque a firma dele garantiu seu emprego, mas não aceitou sua transferência para um lugar mais civilizado, kkkkk. O país parece rico, mas é pobre. Não há mais minério para explorar. O turismo, mesmo em tempos normais, é meio fraco porque o país é muito longe. Por mais que o solo seja mínimo, o que garante a economia é a produção de copra, a polpa seca do coco, o mesmo coco da Bahia que a gente conhece. Só que ele é originário da Ásia. Eu queria arranjar um emprego aqui. Não nasci para ser dondoca. Já falei isso para as minhas amigas daí. Saudades do Nilo Peçanha.
— Filha, está acontecendo alguma coisa? Você não dá notícias a um mês. Por aqui, todos bem. Sua mãe e eu não saímos de casa. Seu irmão e sua cunhada saem muito protegidos. Armando gosta muito da fazenda dele em Quissamã. Lá venta muito. Ele diz que o lugar é muito saudável e que deve ser melhor que Kiribati.
— Oi, pai e mãe queridos. Desculpe o silêncio. Por aqui tudo bem. Com o fechamento dos aeroportos, como já falei, o vírus não tem como entrar. Só se vier nadando, kkkkk. Tenho passado o dia percorrendo as ilhas atrás de emprego. Encontrei uma família mineira que mora aqui doida para voltar ao Brasil. Só não encontrei ainda um campista, kkkkk. Dizem que eles estão em toda parte do mundo. Aqui tem um campus da Universidade do Sul do Pacífico. Pra entrar é preciso concurso e é necessário ter doutorado reconhecido. Está quase certo que eu entre numa escola particular para lecionar geografia. Mas preciso adquirir mais fluência no inglês. Aqui, a maioria da população é cristã, e dessa maioria, mais da metade é católica seguidora do papa. A outra parte é protestante de diversas igrejas. Tem muita igreja por aqui.
— Que bom, filha. Estamos torcendo para você conseguir o emprego. Vai lhe fazer bem.
— Pai, mãe, consegui o emprego, mas tenho uma outra notícia muito boa que me enche de alegria e também de tristeza. Estou grávida. Vou trabalhar até quando der. Estou triste porque vocês não vão conhecer seu neto. Farei de tudo para que meu filho nasça em Campos. Espero que a pandemia termine nesses nove meses que faltam para o nascimento. Beijos felizes para todos.
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