Cinema: Política, psicopatia e fake news
Felipe Fernandes - Atualizado em 11/08/2020 15:01
Rede de ódio (Netflix) – Polarização política, e criação e disseminação de fake news: dois assuntos constantemente abordados na rotina do brasileiro chegam à Netflix em uma produção que mostra que os dois tópicos são questões, em maior ou menor escala, debatidas no mundo todo, fazendo de “Rede de ódio” um filme bem atual em diversos sentidos.
Mas, não se engane, os temas listados acima fazem parte de uma história maior. São ferramentas usadas pelo diretor Jan Komasa e o roteirista Mateusz Pacewicz (dupla indicada ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 2020 pelo longa “Corpus Christ”) para criar um estudo de personagem mesclado com elementos de thriller, em que um menino frio e ganancioso usa as redes sociais para atingir seus objetivos obscuros.
Vencedor do prêmio de melhor longa de narrativa internacional no Festival de Tribeca deste ano, o filme se passa no mesmo universo de outro filme do mesmo diretor que também tem as redes sociais e suas consequências como tema (“Suicide Room”, 2011). Lançado nos cinemas da Polônia no início de março, o foi mais um impactado pela pandemia, que acabou encurtando sua exibição nos cinemas e acelerando sua chegada ao streaming.
Na trama, Tomasz Giemza (Maciej Musialowski) é um jovem ambicioso que, após ser expulso da faculdade de direito por plágio, passa a usar seus conhecimentos de redes sociais para trabalhar em uma agência responsável pela construção da fake news com diferentes propósitos. Em paralelo, ele usa as mesmas ferramentas para ganhar a admiração de uma família que tem ligação com seu passado e com Gabi (Vanessa Aleksander), jovem filha do casal e sua antiga paixão.
Tomasz é retratado como um jovem inteligente, ambicioso, frio (beirando a psicopatia) e sem nada a perder, uma combinação perigosa, que ganha nuances no rosto enigmático, quase inexpressivo de Maciej. O protagonista tem objetivos e desejos muito claros e, desde o início o filme, estabelece que ele está disposto a cruzar qualquer limite moral para alcançar o que deseja.
O filme trabalha os aspectos pessoal e extrapessoal do personagem, duas linhas narrativas que vão convergir com o andamento da história, fazendo com que o personagem faça uso de suas relações para que uma passe a interferir na outra.
A relação de Tomasz com a família nunca é totalmente esclarecida (outro acerto do longa). O roteiro deixa pistas para que o espectador consiga ter uma vaga ideia do tipo de relação que eles tiveram no passado. A aceitação daquelas pessoas é o objetivo principal do personagem, que vê em Gabi o ponto certo para sua entrada na família (mesmo que ele demonstre sentimentos por ela) e, consequentemente, sua ascensão social.
No aspecto extrapessoal, é interessante como o longa mostra a agência que fabrica as fake news. Um mercado obscuro da internet que causa impacto real, seja no mercado comercial ou na esfera política. A relação de Tomasz com sua chefe Beata Santorska (Agata Kulesza) é um ponto importante para o desenvolvimento do personagem, pois Beata atua como uma espécie de mentora.
Um dos acertos da produção é não transformá-lo em uma espécie de hacker, que consiga realizar ações impossíveis. Ele é um jovem inteligente, que usa ferramentas geralmente simples e não se importa com as consequências. Uma característica que perde força com o avanço da trama, já que o roteiro passar a ser conveniente com o personagem em diversos momentos, seja na forma com que ele invade lugares, acessa as contas de seus “companheiros de trabalho”, ou, principalmente, em sua ascensão meteórica dentro da campanha do político Pawel Rudnick (Maciej Stuhr). Esse é um problema frequente em projetos deste estilo, e aqui é o ponto fraco do longa.
Outro ponto importante que é bem trabalhado pelo filme é a polarização política. Por mais que o diretor deixe nas entrelinhas seu posicionamento, o filme não é panfletário e trabalha o protagonista como um jovem apolítico, que encontra naquele cenário conturbado a oportunidade de manipular os dois lados em prol de seus objetivos.
No elenco, o grande destaque vai para Maciej Musialowski. O ator de corpo franzino dá ao protagonista um ar frio, de poucas expressões, que torna difícil entender o que ele sente, característica que faz de sua figura ameaçadora, em um contraste muito interessante com seu porte físico. Sua grande cena reside no plano sequência do clímax, quando, mesmo mantendo a postura, conseguimos entender que existe algum sentimento ali, um momento revelador que diz muito sobre o personagem e seus conflitos internos.
Com uma última cena sútil e aberta a interpretações, “Rede de ódio” é um filme extremamente atual, que aborda assuntos pertinentes em seu pano de fundo, em um estudo de personagem interessante e eficiente que poderia se passar em qualquer país. Sem dúvidas, é uma das boas surpresas do catálogo da Netflix, e não se espante se, muito em breve, for anunciada uma versão estadunidense do longa.

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