A obra de um autor é o seu lugar de fala. Mas não o único, uma vez que o autor, além de ser uma pessoa física, civil, com CPF, é também um escritor, aquele que define uma carreira no campo da literatura. Numa acepção mais ampla, a literatura é um fato de cultura, e esta não resulta apenas de inspiração, talento ou gênio, como pensa o senso comum. Como não é uma atividade formal, da qual não se exige diplomação ou experiência, a literatura resulta de um esforço, de uma inserção mais ou menos bem sucedida no campo. Para isso, o escritor tem de escrever e acionar outros fatores tais como publicar o livro numa casa editora, mas não apenas. Circular no meio falando de sua obra, dando entrevista, respondendo por ela, comparecendo nos meios midiáticos, militando em alguma frente, chancelando outras carreiras e, sobretudo, mantendo sua produção, são outras atividades pertinentes ao campo, e o que o faz ser visto como escritor.
Dessas e de outras formas de atividades ele retira, ou melhor, constrói um lugar de onde falará, um “topos” de fala situado além do seu lugar real. O teórico da análise discurso Dominique Maingueneau dá a esse lugar o nome de “paratopos”, lugar do fenômeno criador a que dá o nome de paratopia, lugar imaginário onde o escritor cria uma cenografia possível para marcar sua obra.
Difícil? Vamos então falar concretamente de um autor.
Tomemos a escritora Carolina Maria de Jesus (1914-1977), autora do célebre “Quarto de despejo – Diário de uma favelada”, de 1960. De onde menos se esperava, surgiu uma escritora. O campo literário é assim, cheio de surpresas por não ter regras específicas, embora um certo lugar, uma certa disposição e uma certa maneira de agir o demarquem.
Carolina era pobre, favelada, negra, com três filhos pequenos. Tirava o seu sustento catando papel e ferros nas lixeiras da cidade de São Paulo. Mas ela escrevia. Entre os seus contos e peças, mantinha também um diário no qual registrava o seu dia a dia, suas impressões sobre a sua vida e de seus filhos. Carolina, apesar de ter só o primário, era alfabetizada o suficiente para expressar em letra escrita mais que apenas anotações corriqueiras, mas impressões sobre a pobreza, as relações entre as pessoas, a política,a favela e o sonho de se tornar escritora. E isso durante décadas. Contabilizam-se cerca de 50 cadernos, espalhados hoje em diversos arquivos, inclusive e principalmente fora do país.
Eis que em um dia de 1958, o jornalista Audálio Dantas (1929-2018), que cobria a vida dos moradores da então favela do Canindé, às margens do rio Tietê, em São Paulo, para uma reportagem, deparou-se curiosamente com Carolina. Ela reclamava de um vizinho, ameaçando colocá-lo no “seu” livro. Segundo Audálio, ela quis chamar a atenção do jornalista. E conseguiu, ação legítima de um projeto de pertencimento ao campo.
“A senhora escreve?”, perguntou ele.
Na sequência, ele lhe propõe publicar seu diário, como narrativa mais que autêntica. Afinal, quem pode falar melhor da vida numa favela do que um favelado? Taí o lugar de fala, que se estende para outros campos e exigências, tais como para falar do negro e fazer uma literatura negra, há de ser negro.
Audálio compilava passagens de seu diário objetivando dar-lhe um aspecto editorial enquanto mantinha reportagens sobre Carolina nas páginas de “O Cruzeiro”, onde trabalhava. “Quarto de despejo” sai em 1960, publicado pela editora Francisco Alves, que logo foi para a famosa lista de mais vendidos. À noite do lançamento, compareceram figuras ilustres e escritores, entre eles Nélida Piñon e Clarice Lispector. Reportagens e mais reportagens ilustravam a vida de Carolina, além de um documentário alemão. Uma marca da escritora, contudo, parecia ser mais importante para a imprensa do que a própria escritora: ela era... negra. Um estudo mostra um apanhado evidente a esse respeito: ela nunca era fotografada autografando seu livro, mas em pé, acanhada, deslocada, com poses aparentando subserviência. Estaria ela fora do seu lugar de fala? O país racista diz que sim, e aquilo era uma concessão.
Há muitos estudiosos negros da questão dos negros, e muitas linhas de combate ao racismo, por quem sofre o racismo. Destaco o trabalho do professor Eduardo de Assis Duarte, da UFMG, que compilou, em dois volumes, expoentes da literatura negro-brasileira do século XVIII ao XXI, e em outro seu uso em sala de aula. Outro bom lugar para aprofundar a questão está no canal do YouTube o “Literafro Entrevista”, com expoentes da questão.
Há, portanto, um movimento hoje, conduzido por escritores e intelectuais negros, que definiu o que seria uma literatura afro-brasileira, ou uma literatura negro-brasileira. Tem a ver com o lugar de fala. Para ser caracterizado como literatura afro-brasileira, o autor precisa ser uma pessoa negra. Mas, não seria tudo literatura brasileira? Não, argumentam eles. A literatura brasileira clássica consagra ao negro um papel irrelevante, situação que se modificou muito pouco desde Maria Firmina dos Reis (1822-1917), Luiz Gama (1830-1852), Lima Barreto (1881-1922) e contemporaneamente Conceição Evaristo (1946), além de outros escritores negros, que escreveram e vêm escrevendo a partir de um lugar liberto da visão estereotipada do negro. Esse lugar de fala, no meu entender, parece sensato, não propriamente como correção de rota. Vamos lembrar que o país é racista, e tudo em torno do negro parece ser uma concessão dos aparatos institucionais brancos. Exageros são cometidos, evidentemente. No tempo de Carolina, por exemplo, breve espaço de 17 anos, da publicação do seu livro até sua morte em 1977, o lugar de fala da literatura era branco.