A música que João Gilberto ouvia durante sua infância, na década de 40, saía do alto-falante de uma loja local. Incluía hits americanos como "Caravan", de Duke Ellington;"Song of India", com Tommy Dorsey; "Dream Lover", com Jeanette MacDonald; e "Ménilmontant", com o cantor e compositor francês Charles Trenet. Claro, houve também uma série de sucessos brasileiros do período, como "Bolinha de Papel", de Geraldo Pereira, com os “Anjos do Inferno”; “Ave Maria no Morro”, de Herivelto Martins, com o Trio de Ouro, cujos membros incluíam o compositor e sua esposa, Dalva de Oliveira; "A Primeira Vez", com o ídolo de João, Orlando Silva; e "Samba da Minha Terra", composto pelo grande compositor baiano Dorival Caymmi e gravado pelo Bando da Lua.
Nos últimos anos, muitas dessas velhas músicas encontrariam vaga no repertório e nas gravações de João Gilberto. Quando tinha 18 anos, João tinha superado Juazeiro e se mudado para a capital da Bahia, Salvador, a fim de tentar a sorte como cantor de rádio. Muitos cantores desse período estavam acostumados a realizar shows de rádio ao vivo. Tradicionalmente, os casinos forneciam o melhor mercado de trabalho para os músicos, mas, quando o jogo foi declarado ilegal, em 1946, os artistas ficaram quase sem trabalho, os tempos ficaram difíceis e a competição por contratos de rádio tornou-se feroz. João nunca foi um sucesso de rádio em Salvador, mas, enquanto ele estava lá, algumas pessoas gostavam de ouvir cantar e curtiam sua voz.
João foi membro do grupo vocal Garotos da Lua, que cantava diariamente na Rádio Tupi do Rio de Janeiro. A emissora tinha acabado de contratar um novo diretor artístico, Antônio Maria, que se tornaria um poderoso editor fonográfico e compositor de sucesso (ele escreveu a letra da "Manhã de Carnaval", tema do filme “Orfeu Negro”). Antônio Maria não gostou do estilo intimista de cantar do principal cantor do grupo, Jonas Silva, queixando-se que Jonas estava cantando baixinho e forçando todo o grupo a "sussurrar". Quando se tratava de cantar músicas de Carnaval, segundo Maria, eles "simplesmente não conseguiam", e cantar músicas de Carnaval, naquela época, era muito importante. Antônio Maria ameaçou cancelar o contrato do grupo, a menos que o substituíssem por alguém que soasse mais como Lúcio Alves, o fundador e líder da primeira versão do grupo vocal Namorados da Lua. João Gilberto é que acabou sendo expulso do grupo por não comparecer a ensaios e matar apresentações.
Muitos anos depois, quando João Gilberto refez seus contatos e se reconectou com a cena musical, as pessoas descobriram que ele havia inventado algo diferente. Não era diferente de uma forma óbvia — afinal, ele agora cantava muito suavemente, passeando livremente pelo ritmo da música. Uma batida modernista ao violão e um jeito de cantar pós-moderno. Jogava com os acordes de um jeito leve e discreto. Cantava percorrendo a letra com atrasos e adiantamentos, sempre coincidindo com a métrica ao final. Isso soava novíssimo, funcionava bem e refletia a maioria dos sons que a comunidade musical cultivava há anos. João Gilberto “colocou o ovo em pé”. Ao mesmo tempo, Antônio Carlos Jobim desenvolvia sua própria carreira como compositor, arranjador e pianista. Seu conceito de estilo de vida era diametralmente oposto ao de João: ele tinha um trabalho de dia, que exigia atendimento regular, organizando uma gravadora chamada Continental. Ele e Vinicius de Moraes comporiam a trilha sonora de “Orfeu da Conceição”, um musical que se tornaria uma peça de teatro e um filme, em 1959, ganhando uma Palme d'Or e um Oscar.
Uma noite, Jobim juntou-se ao seu vizinho Newton Mendonca — levemente bêbados — para escrever um clássico da bossa nova: "Desafinado". Uma melodia dificílima com palavras leves. Ninguém era autorizado a cantar essa música, exceto alguns selecionados. Um deles era João Gilberto; o homem que disse a frase: "No Brasil, até os canários desafinam". Ele tinha um tom perfeito. O canto silencioso e fluido de João Gilberto era bastante controverso na época, porém nunca desafinado: o estilo de cantar do João, até então desconhecido, provocou longas discussões no início. Aqueles que foram escolhidos perguntaram: "Mas ele é realmente desafinado?", o que normalmente gerou uma resposta tão ridícula como a pergunta: "Você está louco? O homem tem ouvido de tuberculoso!” (Um mito comum na época que postulava que as vítimas de tuberculose tinham audição superior e afinação perfeita).
Tom Jobim, Newton Mendonca e João Gilberto se uniram para o primeiro disco da estrela emergente, “Chega de Saudade” (1959), junto com o poeta-diplomata Vinicius de Moraes – que compôs a faixa-título, juntamente com Jobim. Uma venda difícil, por uma cadeia de lojas de discos, desencadeou o lançamento do álbum, que foi seguido pelo bordão que viria a definir a Bossa Nova no Brasil: O amor, o sorriso e a flor (um pequeno verso da música “Meditação”, de Tom Jobim e Newton Mendonça).
Maestro Ethmar Filho – Mestre em Cognição e Linguagem