Cinema: Um pneu apaixonado
*Edgar Vianna de Andrade - Atualizado em 18/08/2020 14:29
Divulgação
Num ambiente quase desértico e degradado, um carro de polícia trafega lentamente por uma estrada de terra derrubando cadeiras dispostas a esmo. Demolição do cinema? Pode ser. Da mala do carro, sai um xerife e se posiciona diante da câmara para fazer uma declaração. Ele pergunta ao público por que o ET de Spielberg é marrom; por que, em “Love Story”, um casal apaixonado morre de amor; por que em “JFK”, de Oliver Stone, o presidente é morto; por que no excelente “O massacre da serra elétrica”, ninguém vai ao banheiro; por que em “O pianista”, de Polansky, o artista sofre tanto. A resposta para todas as perguntas é que não existe razão nenhuma. E anuncia a exibição de um filme dedicado à falta de razão.
Naquela paisagem inóspita, tipica de “Paris, Texas”, de Win Wenders, algumas pessoas se posicionam diante de um lixão, recebem binóculos possantes de um funcionário e esperam o início do filme. Entre os escombros, há um pneu careca que se exercita até conseguir se levantar. Então, ele sai rodando. Primeiro esmaga um escorpião; depois um coelho e, logo após, uma ave. Quando não consegue matar com seu peso, ele se vale de uma força que advém do seu íntimo. Sempre que ele trepida, sabe-se que irá atacar.
Esse pneu vai para a estrada e vê um carro em alta velocidade dirigido por uma moça cuja beleza o encanta. Então, ele usa seu dom e provoca um defeito no automóvel com o fim de pará-lo. Outro veículo passa por ela com o motorista dizendo alguma coisa para a moça. Ele para logo adiante e tem sua cabeça detonada pelos poderes do pneu. A moça se hospeda num hotel de beira de estrada. O pneu também. Ele entra num quarto sem que ninguém perceba e se posta diante de uma televisão. Depois toma banho. Pela porta entreaberta do quarto da moça, a vê nua no chuveiro.
Qual o propósito de tudo isso? Nenhum. Por que um pneu e não um maníaco sexual ou uma cratura sobrenatural? Perguntas sem resposta. A moça entra na piscina e o pneu também. Ele está apaixonado. Ele mata a faxineira do hotel. A polícia investiga a morte. Mais uma vez, o xerife não vê propósito em tudo aquilo. Manda que um dos políciais atirem nele para matar. As balas atingem seu coração. Ele não morre porque no cinema é tudo mentira. É tudo truque.
Enquanto isso, as pessoas com seus binóculos acompanham o filme do pneu. O funcionário que aparece no início fornece alimento envenenado ao público. Todos morrem, menos um que está interessado mais nas aventuras do pneu assassino que na comida. A investigação prossegue, concluido-se que o pneu é verdadeiramente o culpado e que está apaixonado pela moça. A polícia coloca uma boneca com o corpo carregado de explosivos, esperando que o pneu caia na armadilha. Ele não cai. O único espectador vivo interfere no roteiro e sugere um outro caminho. O xerife elimina o pneu com um tiro de arma potente.
Fim? Não. A alma do pneu se incorpora num velocípede e sai pela estrada seguido por muitos pneus abandonados, como em “Forrest Gump” (1994), de Robert Zemeckis, as pessoas correm atrás de um homem sem saber por que razão fazem isso. O fim mostra o velocípede à frente de uma legião de pneus entrando em Hollywood, a meca do cinema. Em síntese, esse é o enredo de “O pneu assassino”, dirigido por Quentin Dupieux em 2010. O filme foi classificado na categoria de comédia, de ficção científica, de terror. Não ficou bem em nenhuma. Foi parar na lata do lixo como “trash”. Voltamos à velha discussão do que seja “trash” no cinema. Geralmente, trata-se de uma produção de baixo orçamento, com artistas obscuros, com roteiro sofrível, com fotografia de qualidade inferior. Enfim, um filme que está no lixo. Em “O pneu assassino”, o orçamento é baixíssimo, mas a fotografia é de boa qualidade. O roteiro tem ou não tem sentido, conforme quem o assista.
O filme foi exibido em Cannes, em 2010. Depois, foi distribuído nos Estados Unidos. De origem francesa, “O pneu assassino” mereceu aplausos e vaias pelo mundo afora. De fato, o roteiro é bizarro: um pneu apaixonado e assassino. Talvez o diretor-roteirista pudesse produzir um filme mais redondo. Mas foi o que se pôde fazer. Na minha coleção de filmes considerados “trash”, “O pneu assassino” seria um dos escolhidos para ilustrar o grupo, não o gênero, pois “trash” não é gênero. Juntamente com “A vagina dentada”, “A camisinha assassina” e “Street trash”, “O pneu assassino” tem algo a dizer, embora não se saiba bem o quê.

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