Todo mundo fala de algum lugar: o seu. Conquistado, melhor que confiscado. O lugar e a autoridade do seu ocupante lhe concedem o direito de falar de si e de tudo o que lhe diga respeito, como também do outro. Mas, como o outro tem o direito de reivindicar, por seu turno, o seu próprio lugar, a briga começa a ficar feia se os lugares de fala se cruzarem.
Fico feliz que o discurso tenha conquistado, conceitualmente, este estatuto, o de que a linguagem não se exerce sozinha, sem a anuência de um sujeito, um lugar, uma situação. Lá se foi o tempo em que se confiava à linguagem todo o poder de significar por si só. Nesse tempo, quando o fundamento da verdade residia no interior da linguagem, o sujeito era concebido como submetido a uma estrutura coercitiva proporcionada pela própria linguagem, frequentemente "convidado" a se deixar levar por ela porque as palavras e as sentenças já haviam solidificado e estabilizado seus sentidos, que elas vinham de um outro lugar devidamente autorizadas. Ao sujeito não restava nada senão acolhê-las, resignadamente. Vivia-se o império da Lógica, na filosofia, e do Estruturalismo, na linguística. A Cabala, ontem como hoje, procurava nas entrelinhas das Escrituras a Revelação. A Palavra já fora lançada, e a compreenderá quem dela se der conta.
Mas, hoje, com o declínio da linguagem absoluta desde os anos 1960 com a ascensão das teorias do discurso, não sobra uma única palavra — ou sentença, ou texto — que não seja posta em suspeita. Pergunta-se (como, aliás, sempre se perguntou) a todo o instante no decorrer de uma conversa: quem disse isso? Quem é ele/ela pra dizer o que disse? Que autoridade tem pra dizer isso? E vocês ouviram calados?...
É assim que se busca o tal lugar de fala, a legitimação do dizer. Em questões de saúde, por exemplo, só o médico especialista poderá falar; de regras de concordância, só o professor normativista poderá dispor, e assim por diante.
Taí a teoria moderna para invocar em tudo o que se diz e se faz coisas tais como ideologia, inconsciente, sujeito, contextualização, sujeitos, enunciador e coenunciador, tudo filtrado numa só equação: lugar de fala.
Os grupos identitários, ou os chamados Coletivos disso e daquilo, costumam se instalar em lugares de fala, reconstruindo-os como exclusivamente seus, para daí reivindicarem a autoridade intelectual, cultural e moral que julgarem pertinente.
Essa temática, vira e mexe, vem à tona. Grupos identitários negros, recentemente, não aprovaram a resenha crítica que a professora e antropóloga Lílian Schwarcz escreveu sobre o último clipe da cantora norte-americana Beyoncé. Uma das alegações era ela não ser negra, portanto, não autorizada a falar sobre questões da cultura negra.
Cada um é que sabe os desertos que atravessou e se julga no direito de falar em primeiro lugar, mais apropriadamente, dos valores condizentes com o lugar que julga ser só seu. Este sentimento de posse atinge não um indivíduo isolado, mas comunidades inteiras movidas pelo mesmo sentimento. Contemporaneamente, as comunidades identitárias, fenômeno não sei se novo, certamente se tornaram públicas pelas redes, com tudo nesse mundo.
O lugar de fala dos grupos identitários negros é bem forte. Seu lugar de fala vem sendo intensamente pavimentado com conquistas muito árduas, entre elas as que se situam no campo politico, como a lei antirracismo e a lei de cotas nas universidades e no serviço público. A trajetória do homem e mulher negros na nossa história, desde a escravidão até o seu status atual, é assustadora, razão pela qual esse lugar de fala carrega mais do que conceitos acadêmicos abstratos, mas cautelas extras. A história do homem negro entre nós sempre foi de exclusão. E a sua história daqui por diante, acredito, deverá ser conduzida por ele, não se admitindo concessões. É mais ou menos isso que caracteriza um lugar de fala: o pertencimento integral a ele, e de tudo que dele emana e produz. Excessos serão cometidos, tal o efeito de traumas históricos sofridos. Mas isso também faz parte do lugar de fala.
Só que há um fato a se considerar. Questões da cultura negra interessam ao pesquisador-antropólogo, como diversas outras questões, tais como a do indígena, do operário, do homem comum, enfim. Lílian Schwarcz reivindica seu lugar de fala quando se interessa por uma matéria e o examina, com graus bem sóbrios de ciência e de subjetividade, normais numa resenha jornalística. Os mínimos aspectos não propriamente positivos sobre o clipe da cantora não agradaram, daí o argumento do lugar de fala. Ora, lugar de fala por lugar de fala, soará estranho um querer predominar sobre o outro.
O meu lugar de fala consiste no exame do que acontece quando os grupos discursam, por exemplo. Há linhas diferentes de análise, e será estranho um grupo me desautorizar no meu direito de fala. Já basta a briguinha entre normativistas (professores que focam o ensino de língua nas normas) e discursivistas, que entendem o ensino de língua como um fenômeno cultural bem mais amplo e menos restritivo.