Arthur Soffiati: Micróbios, ficção e ciência
* Arthur Soffiati - Atualizado em 11/08/2020 13:44
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Há dez mil anos, os grupos humanos são atacados por microrganismos. As primeiras comunidades que se sedentarizaram graças à agricultura e ao pastoreio passaram a produzir alimentos que eram acumulados antes do consumo e também lixo. Esses estoques atraíam animais hospedeiros de vírus, bactérias e protozoários. Insetos picavam os hospedeiros e picavam os humanos, transmitindo-lhes doenças. Desconhecendo o processo de infecção, as pessoas atribuíam as doenças a fatores sobrenaturais. Registros de epidemias foram encontrados nas primeiras civilizações. A literatura e a pintura também retrataram surtos epidêmicos. Alguns assumiram proporções pandêmicas, como a peste justianiana no Império Romano e a Peste Negra, no século XIV. Como América e Austrália ainda não haviam sido incorporadas ao mundo euroasiático, as epidemias oriundas do velho mundo não chegavam até lá. Mas passaram a chegar com virulência a partir do século XV.
O mais antigo relato literário de uma epidemia pandêmica é o livro “Decameron”, do escritor italiano Boccaccio, retratando a Peste Negra na Europa Ocidental (Lisboa: Relógio D’Água, 1990). Sete jovens se refugiam da epidemia num castelo e lá contam histórias para enfrentar a quarentena. Petrarca também registrou a peste bubônica em alguns de seus poemas. A doença contagiosa o poupou, mas matou sua amada Laura.
O tempo passou até que Daniel Defoe, o conhecido autor de “Robinson Crusoé”, lançou, em 1722, o livro “Um diário do ano da peste”. Quando criança, ele escapou de uma epidemia de peste bubônica que assolou Londres no verão de 1665, matando cerca de 17.500 dos seus estimados 93 mil habitantes. Campos já existia como vila, ainda não reconhecida oficialmente. O livro foi motivado por um surto de peste bubônica em Marselha dois anos antes. Defoe cria uma ficção com base na realidade inglesa da qual ele não mais se recordava. Valeu, portanto, a invenção. Mas, de tal forma ela é veraz que passa por um livro de jornalismo investigativo e de resgate. Li o livro na edição de “Artes e Ofícios” (Porto Alegre, 2014).
Um clássico pouco conhecido é “O último homem”, de Mary Shelley. Dela é o muito conhecido “Frankenstein”, que foi popularizado pelo cinema. “O último homem” foi escrito em 1826, narrando uma grande epidemia oriunda de uma guerra que assolou o mundo. Lionel Verney é o último sobrevivente da pandemia. Todos morreram, e sua narrativa não será lida por ninguém. O livro toca em dois temas muito atuais: a guerra e a pandemia. A edição que li é bilíngue e de excelente qualidade (São Paulo: Landmark, 2007).
Num salto grande, alcançamos “A peste”, famoso livro de Albert Camus editado em 1947. É também ficção que alude a situações humanas limítrofes. Camus leu Defoe e caminhou bastante no mesmo sentido. Só que com mais dramaticidade. Tenho a edição da Record (Rio de Janeiro/São Paulo: 2020).
Sobre a gripe espanhola, que se alastrou no mundo no fim da Primeira Guerra Mundial, em 1918, e perdurou até 1920, existe a grande pesquisa de John M. Barry, que resultou no livro “A grande gripe” (Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020). Segundo o autor, a gripe espanhola matou cerca de 50 milhões de pessoas no mundo com uma população total de um bilhão e oitocentos milhões. Por esse prisma, foi a maior pandemia da globalização ocidental até o momento. Já existia o avião, mas não a aviação comercial. O vírus circulava o mundo mais lentamente a bordo de navios. Havia menos conhecimento científico também. Os vírus eram praticamente desconhecidos.
No Brasil, muitos anos depois da gripe espanhola, um paulista que se fixou em Curitiba escreveu livros bastante curiosos na perspectiva do modernismo, associando escrita e imagem. Nasceu, assim, o livrinho “O mez da grippe”, em 1981, de Valêncio Xavier. A princípio, seus trabalhos difundiam-se em âmbito restrito. Sua originalidade foi reconhecida, e cinco de suas ficções experimentais foram reunidas em livro editado pela Companhia das Letras: “O mez da grippe”, “Maciste no inferno”, “O minotauro”, “O mistério da prostituta japonesa & Mimi-Nashi-Oichi” e “13 mistérios + O mistério da porta aberta”. O volume com a reunião dos cinco recebeu o nome de “O mez da grippe” (São Paulo: 1998). Em 2020, apenas “O mez da grippe” mereceu reedição, aproveitando-se da pandemia causada pela Covid-19.
A pandemia originada pelo coronavírus está motivando edições e reedições. O médico Stefan Cunha Ujvari lançou a 2ª edição de “A história da humanidade contada pelos vírus, bactérias, parasitas e outros microrganismos...” (São Paulo: Contexto, 2020). Trata-se de um livro de fácil leitura mostrando a presença de micróbios e outros patógenos na vida humana. O autor escreve sobre herpes, HPV, piolho, hepatite, vírus e animais hospedeiros.
Outro médico a escrever um livro de revisão histórica é Fernando Portela Câmara. Seu título é “O enigma da Peste Negra” (Rio de Janeiro: E-papers, 2015). Embora o título passe a impressão de que o autor só analisa a grande pandemia do século XIV euroasiática, ele vai aos primórdios das civilizações, enfocando o quarteto micróbio-hospedeiro-transmissor-infectado. Com um bom conhecimento histórico, ele examina documentos escritos e pictóricos antigos para encontrar neles indícios das pestes.
Um aspecto nem sempre lembrado e valorizado frente aos patógenos microscópicos é a capacidade que os organismos infectados têm de reagir criando anticorpos. É o que procura mostrar o jornalista Matt Richter em “Imune” (Rio de Janeiro: Harper Collins, 2019).
Desde que a nova virose começou a se transformar numa pandemia, pensadores, antropólogos, médicos, juristas, historiadores e escritores em geral estão refletindo a respeito dos diversos aspectos causados por ela. O primeiro que chegou ao Brasil foi “Pandemia: Covid-19 e a reinvenção comunismo”, do filósofo esloveno e marxista Salvoj Zizek (São Paulo: Boitempo, 2020), que já tive a oportunidade de comentar. A conclusão a que se chega no final da leitura é a de que o autor repudia tanto o governo autoritário chinês quanto o neoliberalismo que cresce no mundo ocidental. O novo comunismo que ele propõe nada mais é do que o estado de bem-estar social, perfeitamente compatível com o capitalismo.
O matemático italiano Paolo Giordano escreveu o livrinho “No contágio” (Belo Horizonte: Âyné, 2020), mesclando experiências pessoais com reflexões sobre a pandemia causada pela Covid-19. Em capítulos curtos, ele mostra bastante sensatez. Pensadores da Europa e dos Estados Unidos também se manifestaram sobre a pandemia, como são os casos de Giorgio Agamben, Michel Maffesoli, Bruno Latour, Noam Chomski e Edgar Morin. Mas eles só concederam entrevistas, por enquanto. Mafesoli, pelo menos, promete um livro. Edgar Morin tem se mostrado o mais lúcido com seus 99 anos de idade. Os demais parecem reducionistas e confusos.
A antropóloga Aparecida Vilaça publicou “Morte na floresta” (São Paulo: Todavia, 2020), mostrando a situação dos povos indígenas brasileiros diante da pandemia. Desde a chegada dos portugueses às terras que receberiam o nome de Brasil, os micróbios patogênicos transmitidos pelos europeus são uma ameaça a sua integridade física. A propósito, ela transcreve um trecho de uma carta de José de Anchieta sobre um grupo indígena infectado. São palavras que nos chegam do século XVI de forma atualíssima: “A principal destas doenças hão sido varíola, as quais ainda brandas e com as costumadas que não têm perigo e facilmente saram; mas há outras que é coisa terrível: cobre-se todo o corpo dos pés à cabeça de uma lepra mortal que parece couro de cação e ocupa logo a garganta por dentro e a língua de maneira que com muita dificuldade se podem confessar e em três, quatro dias morrem; outros que vivem, mas fendendo-se todos e quebra-se-lhes a carne pedaço a pedaço com tanta podridão de matéria, que sai deles um terrível fedor, de maneira que acodem-lhe as moscas como à carne morta e apodrecida sobre eles e lhe põem vermes que se não lhes socorressem, vivos os comeriam.”

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