Carlos Valpassos: Cem Mil
09/08/2020 21:47 - Atualizado em 10/08/2020 20:54
Carlos Valpassos  Antropólogo
Carlos Valpassos Antropólogo
Nós não sabemos quando o Brasil contabilizou 100 mil mortos por Covid-19. Pode ter sido há semanas, ou há mais de um mês, em função dos parâmetros de contagem, da subnotificação e de outras coisas mais. Sabemos, todavia, que oficialmente chegamos aos cem mil neste fim de semana. É apenas um número, mas mesmo assim é um número que assusta pela grandiosidade. E é um número tão grande que impede a personificação massiva da tragédia: não temos como associar emocionalmente a pandemia às 100 mil pessoas que tiveram suas vidas encerradas. No entanto, associamos aos rostos que eram nossos e agora já se foram. A tragédia será lembrada através das faces que não mais veremos.
Há meses atrás, o governo federal iniciou a proposta de apresentar o número de “recuperados” em suas estatísticas. Estados e municípios, aos poucos, foram seguindo o exemplo. “O Brasil não é para principiantes”, sempre soubemos, mas estão levando isso muito a sério. Aproveitaram-se da influência de uma mentalidade positividade-coach-neomodernidade-juventude-gratidão para subverter a lógica de uma pandemia e lançar o foco no número de recuperados e não no número de vítimas. E o mais incrível: em um momento de debate sobre fakenews, sobre a manipulação de notícias e do uso orquestrado de aplicativos de comunicação para influenciar a opinião pública, a estratégia funcionou. Quem se levanta contra os erros grotescos da gestão governamental que já sepultou 100 mil é acusado de só olhar o lado vazio do copo e desconsiderar os milhões de “recuperados”. Parte considerável da sociedade brasileira prefere esquecer que a doença possui baixa letalidade e alta taxa de contágio, o que significa que quanto mais contaminar, mais vai matar. E parece inútil recordar que uma gestão competente não teria impedido todas as mortes, mas poderia ter reduzido significativamente as perdas que tivemos. O Brasil se perdeu na desinformação, na ignorância orgulhosa de si e na negação obtusa das evidências.
A ditadura militar iniciada nos anos de 1960 foi marcada pela “Passeata dos Cem Mil”. A ditadura da desinformação que vivenciamos hoje provavelmente registrará nos livros de História “A morte dos Cem Mil”. Cem mil brasileiros e brasileiras sem vida por uma “gripezinha”. E o presidente da República dá a entender que basta coragem e cloroquina para enfrentar o vírus, como se os cem mil mortos não fossem corajosos e como se boa parte deles não tivesse tentado o remédio mágico e sem eficácia. Triste país onde são noticiadas cem mil mortes e diversas pessoas comemoram os recuperados — que nem precisavam ter se contaminados. Não existe “positividade” que transforme montanha em morrinho.
E para não dizer que não falei das flores, em Campos a vida volta ao “normal” na “positividade” dos bares lotados, das regras de distanciamento negligenciadas e da negação de que nossas estatísticas de contágio deveriam acender uma luz vermelha, mas que o daltonismo do momento insiste em dizer que mais parece verde. Um governo que não conseguiu impedir o crescimento do mato pela cidade conseguirá impedir o avanço de uma pandemia? Talvez o coronavírus considere tudo muito simples por aqui e canse de jogar um jogo fácil e facilitado. Vamos torcer por isso, positividade!

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