O poder, quando se o tem, transtorna não só o seu detentor, mas também um mundo de gente ao redor dele — do mais graduado ao menos.
Essas e outras coisas me vêm à cabeça em diversos momentos e ainda sobre eventos do mundo contemporâneo. Uma hora é o todo ex-poderoso governador do Rio de Janeiro confessando o vício do poder e do dinheiro; outra é o atual presidente desfilando com sua trupe todo um cortejo de amadorismo administrativo e genocida.
A história inteira da humanidade está coberta desses tipos, o que nos faz ora gargalhar, ora nos assombrar. Até nos humanizarmos para que chegássemos ao ponto de uma democracia representativa se alternando no comando, o poder é e continua sendo, vamos concordar com o ex-governador preso, um vício, e passou por vários estágios de refinamento, a ponto de um déspota e/ou bobalhão chegar até ele — imaginem só! — pelo voto livre e voluntário.
O filme “A favorita”, de Yorgos Lanthimos, nos dá chance de passar a limpo esse traço característico do poder, na forma como os monarcas o exerciam, principalmente os absolutistas, ao manterem todo o Estado aos seus pés. A rainha Anne era assim, pelo menos como apresentada no filme. Ainda que no seu curto reinado (1702-1707) tenha deixado algum saldo positivo para o Império britânico, o que a história também alimenta com gosto é o fracasso ou o lado tosco e histriônico de seus personagens. É por aí que o filme desenvolve a intriga, explorando o comportamento bipolar da rainha, as pequenas maldades e humilhações dirigidas aos criados, o sofrimento que lhe causa a gota, a dependência afetiva de sua confidente Lady Sarah, arguta influenciadora de suas decisões.
As coisas vão bem até chegar ao Palácio a jovem Abigail, prima de Sarah, de procedência nobre, mas de família arruinada financeiramente. De criada do palácio, Abigail escala o posto de dama de companhia da rainha e esposa, enfim, de um nobre influente na Corte. No trajeto de sua ascensão, Abigail vencedora na contenda com Sarah pelo posto de favorita, pagará um tributo amargo, a solidão do poder conquistado, tendo ainda que compartilhar da cama da rainha e suportar os seus achaques.
A rainha é pintada com as cores do ridículo e a história não lhe concedeu alcunha, mas bem que poderia ser Anne, a Bobalhona. Sem decoro e alienada, lembra bem o nosso próprio monarca Dom João VI como pintado por Carla Camurati no seu filme, “Carlota Joaquina”, e pelo seriado televisivo “O quinto dos infernos”. Há quem conteste, argumentando que essa figura só se presta a diminuir a imagem de um grande estadista. Contudo...
O fato é que a maioria devastadora dos governantes atuais não nos causa admiração pura e voluntária. Governam o estado como se governassem de suas casas, figurando em fotos públicas trajando camiseta pirata de clube, calças de tactel e chinelos Rider. Também jogaram no lixo os princípios republicanos de impessoalidade, probidade, equanimidade. Agem como se tivessem necessidade intrínseca de provocar os seus adversários tal o baixo nível com que alimentam seu cotidiano. De direita, principalmente, mas também de esquerda, esses tipos de governantes prestam contas apenas a si mesmos.
O nosso, ai de nós, caminha a passos largos para figurar na história com uma alcunha do tipo Bolsonaro, o idiota, ou Bolsonaro, o déspota sem esclarecimento, ou Bolsonaro, o Laranja...
Nos Estados Unidos, que tal Trump, o Topetudo? Ou Trump, o Racista? Nem é bom lembrar da contabilidade da propina da JBS quando disfarçava nomes de políticos corruptos com alcunhas simpáticas como Mineirinho, Angorá, Santo, Nervosinho, Botafogo...
O antigo costume está em desuso. Para engrandecer ou escarnecer, foram alcunhas que perpetuaram personagens na história. É o caso de um conquistador sanguinário, mas muito típico na história, como Alexandre, o Grande; ou William, o Conquistador; respectivamente na Macedônia da Antiguidade e na Escócia de mil anos atrás.
Para escarnecer, a lista também é mais que memorável. Na Idade Média, quando não se usava ainda nome de família, mas traços da personalidade ou aspectos da profissão, nem os monarcas escaparam de passar para a história ostentando numa breve e singular alcunha a sua principal virtude ou vício. Assim, temos Luís V, o Preguiçoso, por ser muito indolente e sem iniciativa no governo dos francos ainda no século X, e, dois séculos antes, Pepino II, o Breve, por ter baixa estatura física para um soberano. A lista continua com Ivan, o Terrível, na Rússia; e Maria, a Sanguinária (a Bloody Mary), na Inglaterra, ambos do século XVI. Nessa mesma época, os otomanos tiveram o imperador Selim II, batizado certamente com muita justiça de o Bêbado.
Entre nós , tivemos dona Maria I, a Louca, que governou Portugal e Algarve de 1777 a 1815, alcunha que também cairia bem a sua nora Carlota Joaquina que, de quebra, também levaria a de a Insaciável.
“Tempos sombrios”, por enquanto, é a melhor alcunha para esse início de século, contrariamente ao século XVIII, da Luzes.