Arthur Soffiati: A humanidade e as florestas (I)
Arthur Soffiati - Atualizado em 07/08/2020 16:00
Sempre e nunca são palavras que não devem ser usadas pelo historiador. O senso comum acredita que o ser humano sempre foi desmatador, caçador e poluidor. Que faz parte da natureza humana destruir a natureza não-humana. Por outro lado, não é raro ouvir que nunca houve um período em que a humanidade tenha se relacionado de forma equilibrada com a natureza. Associo arbitrariamente a origem da cultura ao Homo habilis, ancestral do Homo sapiens, há 1.400.000 anos passados. Supõe-se que os primeiros hominídeos, grupo zoológico do qual fazemos parte, desceram das árvores e se adaptaram às savanas. Sua economia baseava-se na coleta, caça e pesca. É de se perguntar por que o Homo habilis, o H. erectus, o H. neaderthalensis e H. sapiens desmatariam. Uma que outra árvore podia ser cortada ou queimada, mas não toda uma floresta. Não havia necessidade de desmatamento nem tecnologia capaz de tal proeza. No máximo, um incêndio provocado por raios ou por combustão espontânea. Também um incêndio ocasional depois da invenção das técnicas de produzir fogo.
Até 10.000 anos passados, não houve necessidade de desmatar, porque a humanidade se organizava em pequenos grupos nômades que não incluíam em sua economia o uso de caules em larga escala. Com o aquecimento climático no início do Holoceno, algumas sociedades nômades inventaram a agricultura e o pastoreio. Comumente, as áreas para plantar e pastorear eram aquelas sem floresta, para facilitar o trabalho. Caso necessário, parte das florestas era derrubada para o plantio e o pastoreio. Elas também serviam para o fornecimento de lenha e de madeira. Contudo, o desmatamento era mínimo, já que a economia então vigente visava apenas a subsistência das sociedades.
Com a formação das civilizações, o desmatamento aumentou. Ampliou-se a necessidade de campos de cultivo e de pastagem, bem como a necessidade de lenha e de madeira para construção. Há uma conhecida passagem na “Epopeia de Gilgámesh” em que o herói mitológico, com ajuda de seu amigo Enkídu, mata Humbaba, o protetor da floresta. Eram os primórdios da civilização mesopotâmica. A natureza ainda era protegida por entidades divinas e tinha um caráter sagrado. Gilgámesh é meio deus, meio humano. Depois de matar o protetor, ele destrói a floresta. Progressivamente, o sagrado cede lugar ao profano.
Também na civilização chinesa, houve desmatamentos e caçadas colossais logo em sua fase inicial. Alguns historiadores sustentam que o confucionismo e o taoísmo são respostas culturais aos ataques contra a natureza e contra os humanos. Algo como uma tentativa de ressacralização do mundo. Na civilização Índica, que se desenvolveu no vale do rio Indo, atual Paquistão, a historiografia vem demonstrando que grandes desmatamentos contribuíram para seu fim. Como não havia pedra, os prédios e monumentos eram construídos com tijolos. Para seu cozimento, as matas foram transformadas em lenha. Entre os maias, a explicação mais consistente para explicar seu fim foi um grande desmatamento para ampliar campos de cultivo. Esses desmatamentos foram praticados em encostas de morros, contribuindo para a erosão e o assoreamento das partes baixas, onde havia brejos e lagoas.
No diálogo “Timeu”, Platão narra que o desmatamento da península Ática transformou um corpo carnudo num esqueleto. Sua narrativa sobre os processos de erosão, empobrecimento dos solos e assoreamento do mar nas partes rasas é bastante atual. Na ilha de Páscoa, hoje conhecida com o nome original de Rapa-Nui, a construção de grandes ídolos de pedra exigiu uma base rolante para transportá-los do centro da ilha para a costa. Como não se conhecia a roda, usava-se o tronco da palmeira mais alta do mundo, existente na ilha, como rolamento. Assim, o desmatamento foi deixando a ilha desprotegida de cobertura florestal. Além do mais, cada grupo incendiava a mata de outro(s) como arma de guerra. Quando os europeus chegaram à ilha no século XVIII, Rapa-Nui estava devastada, erodida e assoreada.
O desmatamento foi praticado em várias sociedades, com modos de produção distintos. Cada cultura construiu sua visão sobre as florestas. De sagradas a profanas, passando por concepções intermediárias. Nenhuma concepção, porém, transformou as matas em fonte de lucro como a ocidental em sua fase capitalista. Na sua fase de formação, entre o século V ao século XIV, vigorou o sistema feudalista de produção. Nele, as atividades rurais representavam o sustentáculo da economia. Partindo da Itália, os missionários cristãos não eram muito simpáticos às florestas porque elas eram sagradas para os povos ainda não convertidos e motivo de adoração. Depois de convertidos, eles eram instados a derrubar as matas. Mesmo assim, restaram muitas florestas, agora com caráter utilitário. Elas complementavam a economia feudal. Havia florestas comunais, ou seja, florestas que podiam ser usadas por todos, sobretudo pobres, para obtenção de lenha, madeira, água fresca e caça. Essa visão começa a ser mudada a partir do século XI, quando o capitalismo começa a progredir.

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