Christiano Fagundes: Cecília Meireles - a arte de reinventar a vida
Christiano Fagundes - Atualizado em 04/08/2020 22:33
A atual conjuntura mundial é adversa, em decorrência da Covid-19. Tempos difíceis em diversos segmentos. Mas é preciso caminhar, é preciso fazer a vida pulsar, é preciso reinventar a vida. Quando o assunto é reinventar a vida, lembro-me, de imediato, da poetisa Cecília Meireles.
Cecília Benevides de Carvalho Meireles nasceu, no Rio de Janeiro, em 7 de novembro de 1901. Órfã de pai e mãe, desde os três anos de idade, foi criada pela avó materna.
No ano de 1919, estreia em livro, com a obra “Espectros”. Trata-se de um livro de poemas que foi bem recebido pela crítica.
Pode-se afirmar que a produção literária de Cecília Meireles é ampla, pois, conquanto seja mais conhecida como poetisa, escreveu contos, crônicas e literatura infantil.
Um dos traços fundamentais da poesia de Cecília Meireles é a sua consciência da fugacidade do tempo, da transitoriedade da vida, das coisas. A seguir, um comentário feito pela própria escritora: “Nasci aqui mesmo no Rio de Janeiro, três meses depois da morte de meu pai, e perdi minha mãe antes dos três anos. Essas e outras mortes ocorridas na família acarretaram muitos contratempos materiais, mas, ao mesmo tempo, me deram, desde pequenina, uma tal intimidade com a Morte que docemente aprendi essas relações entre o Efêmero e o Eterno que, para outros, constituem aprendizagem dolorosa e, por vezes, cheia de violência. Em toda a vida, nunca me esforcei por ganhar nem me espantei por perder. A noção ou sentimento da transitoriedade de tudo é o fundamento mesmo da minha personalidade.”
Mister registrar que uma das marcas do lirismo de Cecília Meireles é a musicalidade de seus versos, com o registro de muitas aliterações. Abaixo, o poema “Rômulo rema”, constante da obra “Ou isto ou aquilo”, no qual a aliteração faz-se presente: “Rômulo rema no rio./ A romã dorme no ramo,/
a romã rubra. (E o céu)/ O remo abre o rio./O rio murmura./ A romã rubra dorme/cheia de rubis. (E o céu)/ Rômulo rema no rio./Abre-se a romã/Abre-se amanhã/.Rolam rubis rubros no céu/. No rio,/Rômulo rema.”
No livro “Romanceiro da Inconfidência”, Cecília Meireles retoma uma forma poética de tradição ibérica, denominada romance (composição de caráter popular, escrita em redondilhas), para reconstruir o episódio da Inconfidência Mineira.
Cecília dedicou-se ao magistério primário e universitário, fez crítica literária e colaborou na imprensa, vindo a falecer em 9 de novembro de 1964.Recebeu, post mortem, o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto de sua obra. A seguir, uma outra declaração da poetisa: “Minha infância de menina sozinha deu-me duas coisas que parecem negativas, e foram sempre positivas para mim: silêncio e solidão. Essa foi sempre a área de minha vida. Área mágica, onde os caleidoscópios inventaram fabulosos mundos geométricos, onde os relógios revelaram o segredo do seu mecanismo, e as bonecas o jogo do seu olhar. Mais tarde, foi nessa área que os livros se abriram e deixaram sair suas realidades e seus sonhos, em combinação tão harmoniosa que até hoje não compreendo como se possa estabelecer uma separação entre esses dois tempos de vida, unidos como os fios de um pano.”
Abaixo, transcreveremos, respectivamente, os poemas “Retrato” e “Motivo”. Aquele caracteriza-se como um poema de tom intimista, de introspecção; este é um poema em que Cecília faz uma reflexão sobre o próprio ato de escrever, ou seja, trata-se de um texto metalinguístico, in verbis. “Retrato”: “Eu não tinha este rosto de hoje,/ assim calmo, assim triste, assim magro,/nem estes olhos tão vazios, /nem o lábio amargo./ Eu não tinha estas mãos sem força, /tão paradas e frias e mortas; /eu não tinha este coração/ que nem se mostra. /Eu não dei por esta mudança,/tão simples, tão certa, tão fácil:/- Em que espelho ficou perdida a minha face?”
Agora, os versos do poema “Motivo”: “Eu canto porque o instante existe/ e a minha vida está completa./ Não sou alegre nem sou triste:/ sou poeta./ Irmão das coisas fugidias,/Não sinto gozo nem tormento./ Atravesso noites e dias/no vento./ Se desmorono ou se edifico,/ se permaneço ou me desfaço,/ – não sei, não sei. Não sei se fico/ ou passo./ Sei que canto. E a canção é tudo./ Tem sangue eterno e asa ritmada./ E um dia sei que estarei mudo:/ – mais nada.”
Inspirados em Cecília, poetisa que tinha a plena convicção da efemeridade e que venceu, ainda criança, a dor da despedida, reinventemo-nos!

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