Na Ribalta: "Mephisto" - Poder e arte
Fernando Rossi - Atualizado em 30/07/2020 19:31
"Mefhisto", obra-prima do cinema, co-produção húngaro-alemã de 1981, dirigida pelo húngaro Istvan Szabo, vencedor dos prêmios mais importante do cinema: Oscar de melhor filme estrangeiro, Palma de Ouro de melhor roteiro em Cannes e melhor filme escolhido pela crítica européia em 1982.
Brilhante, inquietante, envolvente, "Mephisto" levanta uma questão complexa e perturbadora: o envolvimento do artista, o seu papel político e social num regime totalitário. A história do filme é verdadeira: um jovem ator, para quem representar é tudo (e o sucesso, uma espécie de divisa de vida), faz todas as concessões, abdica de ideais antigos, passa a ser movido unicamente pelos interesses que o permitam representar, tornar-se famoso, ser admirado. Ironicamente, sua oportunidade de atingir a glória surge a partir de uma interpretação de Mephistófeles na peça “Fausto”, de Goethe, em meados da década de 20, em Berlim. No caso do ator, porém é ele quem vende a alma ao nazismo.
"Mefhisto" é baseado no romance homônimo de Klaus Mann (o livro ficou 40 anos proibido na Alemanha), escrito durante o exílio do escritor na Holanda, em 1936. O segundo filho mais velho de Thomas Mann inspirou-se na trajetória de Gustav Grundgens, foi amante de Klaus e casado com sua irmã Erica. O escritor suicidou-se em 1949, aos 42 anos, em Cannes, segundo os jornais da época, inconformado com o destino e as contradições da Alemanha.
O papel do ator, seu compromisso e responsabilidade, a utilização e manipulação de um ator por um regime autoritário são das questões levantadas por Mephisto. No início de carreira, prega um teatro revolucionário em nome do ideal de sacudir, conscientizar as massas. Mais tarde, utiliza o mesmo argumento, só que para defender o teatro promovido pelo III Reich. Contraditório — e ambíguo —, prega a revolução social, canta contra a burguesia, mas sua incontrolável sede de sucesso e ascensão social o faz namorar (e acaba depois por casar) com representante da burguesia que tanto critica.
Um dos aspectos fascinantes de Mephisto é retratar o teatro, seus bastidores, o mistério do ator, de forma rigorosamente cinematográfica. Evidentemente, a história desse ator que se imagina acima da realidade, vivendo exclusivamente o que acredita ser o seu compromisso com a arte e que acaba prisioneiro da própria realidade, é principalmente uma reflexão política. Hendrik Hofgen, o ator, torna-se famoso pela interpretação de Mefistófeles, mas seu papel humano acaba sendo o de Fausto, que vendeu a alma ao tentador em troca dos benefícios do mundo. Famoso e prestigiado durante o nazismo, Hofgen é adulado pelo General-Ministro, que sempre o chama Mefhisto, mas que na verdade o tem como prisioneiro das tramas mefistofélicas com que o enreda em nome do poder.
Pode o artista alhear-se da realidade política que o cerca e viver exclusivamente para sua arte? “Mephisto” responde que não. Hofgen não consegue fazê-lo, assim como não o pôde o ator Gustav Grudgens, o maior da era nazista que lhe serviu de inspiração. Nessa tentativa, Hofgen sacrifica sua felicidade pessoal, suas convicções humanas, sociais e políticas, e finalmente a própria identidade artística, quando aceita fazer um Hamlet “popular e ariano”.
Mephisto é a história do conflito entre a vontade e as circunstâncias, entre as convicções e o poder, e escapa a qualquer maniqueísmo. Hofgen não é um colaboracionista por força de uma decisão tomada livremente. Sua única opção, na verdade, é a da fama, tomada ainda no pequeno teatro Hamburgo em que trabalhava. Sua trajetória é a induzida por Mefistófeles, o demônio da lenda do Fausto, que sugere a venda da alma para a preservação de uma ambição.
Magnífico exemplo do cinema húngaro moderno, o filme reflete a tragédia da pequenez humana diante de seu destino, da incapacidade de cada um conviver com suas convicções em um meio social invariavelmente opressor.
Em 1979, a francesa Ariane Mnouchkine fez do romance homônimo de Klaus Mann uma adaptação para o teatro, que Miguel Falabela e José Wilker decidiram em 1993 produzir, com Falabela no papel título, mais um elenco de 20 atores. Um espetáculo que condenava a arte submissa à política, para Wilker a peça diz que o artista não pode submeter sua criatividade a nenhuma engrenagem política. Um bom assunto para se discutir?

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