Arthur Soffiati: Quadrinhos - Da revista ao livro
* Arthur Soffiati 27/07/2020 18:36 - Atualizado em 03/08/2020 17:46
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uando criança e adolescente, eu era um aficionado das histórias em quadrinhos. Ganhava revistas dos meus pais e dos meus avós com os super-heróis da DC Comics, aqueles da primeira geração, como Super-Homem, Batman, Fantasma, Mandrake, Nick Holmes, Capitão Marvel. Eram heróis perfeitos. Não tinham vícios. Eram homens e mulheres virtuosos (havia também as super-heroínas). Não namoravam ou, se namoravam, não havia entre eles nada de intimidades. Fantasma tinha uma noiva eterna. Super-Homem também. Batman tinha Robin, o amigo inseparável. Era um mundo seguro e feliz com esses heróis que representavam os valores dos Estados Unidos, raramente praticados.
Mas eu gostava também dos personagens da Disney. Pato Donald e os sobrinhos, também com Margarida, sue eterna namorada; o sovina tio Patinhas, ambicioso mas camarada; Mickey e sobrinhos, ele também namorando Minie eternamente. Pateta, Clarabela, Horácio e tantos outros. Do mundo perfeito, passava-se ao mundo ingênuo.
O que me fascinava eram os almanaques. Eles eram anuais. Almanaques de “O Tico-Tico”, “Vida Infantil”, “Tiquinho”. Os heróis brasileiros já eram meio malandros. Disney quis imitá-los com Zé Carioca, mas não conseguiu. Nunca a ingenuidade de Reco-Reco, Bolão e Azeitona, de Luís Sá, foi alcançada pelo poderoso Disney. Nunca apareceu um malandro como Pituca, de Joselito, nos Estados Unidos. Talvez apenas Condorito, de Pepo, no Chile. A liberdade de criação de Lourolino e Remendado, também de Joselito, me encantava em “Vida Infantil”. Até hoje me encanta e surpreende. Joselito merece ser redescoberto.
Em 1960, aos 13 anos, troquei os quadrinhos pela literatura, filosofia, ciência e música. Aquele mundo do desenho aos quadradinhos, como são chamados os quadrinhos em Portugal, era coisa de criança. Só voltei a eles na década de 1970. Esse desinteresse de dez anos me fez perder os heróis humanizados da Marvel. E meu retorno se deve ao fato de terem os intelectuais descoberto os quadrinhos como uma forma de arte. Eu não lia os quadrinhos, mas os livros sobre os quadrinhos de Moacy Cirne principalmente.
Os quadrinhos passaram a fazer crítica social e política. Sem muita convicção, vi neles uma nova forma de arte. Os intelectuais demoraram a concluir que estavam diante de uma nova expressão artística, assim como aconteceu com o cinema no início do século XX. Ao lado das revistinhas vendidas em bancas de jornal, começaram a ser publicados livros de autores considerados artistas. Passei a lê-los, mas nunca com a frequência da minha inocente infância e pré-adolescência. Tratava-se agora de quadrinhos adultos.
Em 2019, li quatro livros de quadrinhos. Quando assisti a “Trinta dias de noite”, filme de 2007, com direção de David Slade e baseado no livro de quadrinho com mesmo título e de autoria de Steve Niles e Ben Templesmith, desejei logo comprar o livro (Rio de Janeiro: DarkSide Books, 2019). O contraste entre o branco da neve e a escuridão da noite numa cidadezinha do Alasca; o sangue na brancura e aquela legião de vampiros famintos, mas ao mesmo tempo charmosos, pareciam inovar o terror com vampiros. Assisti ao filme novamente, agora, e não encontrei mais tanto encanto. Talvez tenha sido efeito do livro, com uma história mais longa que a exibida no filme. A escuridão do desenho em mancha, mais insinuando a história do que a revelando abertamente, fez com que eu apreciasse mais o livro que o filme. Os desenhos parecem nascer de sangue espirrado numa superfície, criando um clima digno de vampiros. Mesmo assim, não concluí que estava diante de uma obra de arte.
Li também “Black hole”, de Charles Burns (Rio de Janeiro: DarkSide Books, 2017), reunindo várias histórias ou capítulos com os mesmos personagens num mundo de drogas, sexo e marginalidade. Burns concebe um mundo onírico, sem clímaces. Personagens estranhos se movimentam nas histórias. Ele nos leva a esperar algum desfecho vigoroso, mas nada acontece. E o buraco negro do título aparece do princípio ao fim. Nenhum momento trágico, nenhuma passagem inesperada. Não direi que seu desenho é elaborado, como insistem seus admiradores.
Já a quadrinista Emil Ferris é uma grata surpresa. Seus desenhos são feitos com caneta esferográfica sobre papel que simula um caderno escolar. Algo assim como quem está estudando e desenha no caderno de tarefas figuras e histórias como distração. Mas é tudo farsa. Ferris é uma excelente desenhista e roteirista. No seu alentado álbum “Minha coisa favorita é monstro” (São Paulo: Quadrinhos na Cia, 2019), ela coloca uma menina com aparência de vampira nada sensual que tem um irmão envolvido com mulheres de forma misteriosa. A mãe zela pela educação de ambos. A menina tem dentes de vampiro, mas é uma lobisomem (ou lobismulher) que sofre preconceitos até ser aceita por poucos.
Ela se envolveu com um casal cuja mulher é judia e esconde uma história misteriosa na Alemanha nazista. Um dia, ela aparece morta. São muitos os suspeitos. Seu marido é o principal. Por conta do irmão, a menina frequenta salões de arte.
No entanto, a grande descoberta para mim foi Alison Bechdel, outra desenhista. Dela, chegou até nós “Fun Home: uma tragicomédia em família” (São Paulo: Todavia, 2019). Bechdel é uma excelente memorialista que se expressa pelos quadrinhos. No livro, ela mostra a sua relação tensa com seu pai. Há conflito e ternura nessa relação. O pai é homossexual que esconde a sua condição no casamento e nos filhos. Tem uma família que ele aparenta ser tradicional. Mas, nos gestos, ele revela a homossexualidade. É preciso atenção. Trata-se de um homem perfeccionista que gosta de decoração e de interferir no modo de a filha, que também se descobrirá lésbica assumida, se trajar.
O pai foi dono de uma funerária e gostava de lidar com a morte. Mais especificamente com os mortos. Inclusive, procurava mostrar cadáveres aos filhos como algo muito natural. Ele tem um amante. A mãe sabe da sua existência. Aliás, a vida do casal é amarga. Um dia, ele morre atropelado por um caminhão. A dúvida fica no ar: acidente ou suicídio?
Pela primeira vez em minha vida, estou diante de uma autora que consegue colocar em quadrinhos todo um drama psicológico, a dimensão intimista dela, da mãe e do pai, as discussões sobre alta literatura. Sua narrativa não é linear. Como Proust, ela mergulha no mundo da memória, do tempo, das conjecturas, das dúvidas. A figura narcisista de seu pai a atrai e a repele. A narrativa contida nesse livro de quadrinhos bem podia ser estampada num livro de memórias. E não vem ao caso se seu desenho é artístico. Ela desenha e optou pelos quadrinhos para contar a sua bela, tensa e trágica história.

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