A quarentena me ensinou coisas que eu já sabia e tinha: paciência e resignação, de modo que não estou aprendendo nada com ela, mas refinando. Quando ela chegou, me fechei ainda mais em mim mesmo. Tanto melhor. Resolvi, não apenas ler, mas estudar, estudar mesmo — me autopropor cursos, organizar pequenos congressos temáticos, ouvir lives, participar de outras. E tudo isso, nas entranhas da internet, mais precisamente do formidável arquivo do YouTube. Em nenhum momento abandonei os livros ou a palavra escrita, argumentada, sob formas diversas, na ciência, na literatura, no jornalismo.
Um dos esforços plenamente compensados, por exemplo, deu-se na busca que fiz por Jorge Amado, do qual conhecia apenas o romance "Gabriela Cravo e Canela". Não sei por que razão, eu o havia deixado de lado no trajeto de minha formação. Eis que, sem dispor em casa de um único exemplar de sua vasta obra, procuro-o na internet, e lá estão entrevistas e mais entrevistas, documentários, artigos acadêmicos e reportagens sobre a obra e o cotidiano do homem e do escritor, além, é claro, de romances, quatro dos quais li, incluindo aqueles em versão oral.
Saí do zero em matéria de Jorge Amado e me tornei apto a dar um parecer sobre sua obra, mínimo que seja, de segurar meia hora de papo com algum especialista, ilustrar minhas próprias conversas com alunos e amigos sobre o que sei agora do escritor baiano por aprendizado planejado. A combinação entre a leitura de sua obra, seus pronunciamentos sobre si próprio e sua criação, seus afetos e saberes, suas impressões sobre o mundo e sobre a cultura e a política são a soma de um saber essencial para se apreciar um escritor.
Ponto pra pandemia, e pra internet, que nos oferece tudo isso a partir de um custo praticamente zero e sem precisar sair de casa.
Outro exemplo: em um fim de semana, ouvi as entrevistas de oito escritores, no acervo do famoso Roda Viva, da TV Cultura, de São Paulo, disponibilizado no YouTube. São entrevistas situadas entre fins dos anos 80 e data bem recente. Entrei no universo, ou microcosmo instantâneo de figuras como Fernando Sabino (1923-2004), Millôr Fernandes (1923-2012), Rachel de Queiroz (1910-2003), Adélia Prado (1935), concluindo-se com Haroldo de Campos (1929-2003), Lygia Fagundes Teles (1923), João Ubaldo Ribeiro (1941-2014) e Ariano Suassuna (1927-2014).
Oh, glória! Foi uma espécie de congresso de escritores, organizado por mim, de forma caótica e aleatória. Cada um, com sua contribuição, situa a literatura brasileira situando-se a si mesmos nos campos do pensamento político, do cotidiano criador, das relações, dos causos engraçados, de vivências curiosas na raiz de suas experiências como escritores.
Todas essas disposições de falar sobre literatura me reportaram nostalgicamente à minha época de estudante, anterior a esses últimos trinta anos, quando os meios de comunicação de massa eram mais distantes do mundo acadêmico, quando as tecnologias digitais ainda não existiam na forma como existem hoje.
Hoje, de que reclamam os estudantes, com esse mundo de coisas se oferecendo gratuitamente, e que exige apenas um esforço e um planejamento? Sim, planejamento, porque a internet tem vida própria e vai ela mesma orientando o navegante segundo um algoritmo inescrupuloso e conivente com a dispersão!
Apesar de muitos dos entrevistados terem vivido até recentemente, é interessantíssimo e inevitável comparar a época do registro das entrevistas com a atual. Na entrevista de Sabino, por exemplo, se deplora a ameaça de extinção do ministério da Cultura pelo então presidente Collor. Em outra, a jornalista e articulista Cora Ronai, que já era especialista em softwares, talvez não imaginasse o intenso desenvolvimento que a internet doméstica sofreria com a abundância dos aplicativos modernos disponíveis nos smartphones e que possibilitaria a total disponibilidade deste imenso repertório para todos os lugares do espaço. Haroldo de Campos, indagado sobre o futuro do livro em papel, foi otimista: este não desapareceria, mas viria acoplado a um dispositivo suplementar, a exemplo de um livro do roqueiro Arnaldo Antunes. Outros aspectos foram o exibicionismo de um vaidoso Millôr Fernandes, de um engraçado Sabino (a mais divertida das entrevistas), de uma despojada franqueza de Rachel de Queiróz, a de verbo mais fácil, afirmando, não a título de confissão, ter participado de conspiração contra o governo de Jango e que foi favorável ao golpe de 64, que ela chamava de revolução. O entrevistador Caio Fernando Abreu deixou claro nas suas perguntas o seu desagrado e constrangimento, e quase se criou um clima mais tenso entre os dois. Ao contrário, a entrevista com Lygia foi de completa amabilidade, com sequer um aspecto de sua obra revolucionária perscrutado. Outra coisa quase tensa foi a segurança com que Adélia argumentou o seu aparente e suposto antifeminismo ao colocar a mulher como segundo, depois do homem...
Esses e outros aspectos mais diretamente ligados ao meu interesse pelos depoimentos-testemunho valeram imensamente o esforço de me prostrar por mais de 12 horas diante da tela ou do áudio dos dispositivos, que usei em qualquer lugar e fazendo qualquer outra coisa.