Os inacreditáveis episódios envolvendo fiscais que, no cumprimento do dever, tentavam fazer cumprir a lei e — pasmem! — salvar vidas, e receberam como resposta uma “carteirada”, mostra como continua a ser uma parte da sociedade que insiste em se achar melhor que os outros. No mais recente que ganhou repercussão, o desembargador Eduardo Almeida Prado Rocha Siqueira, do TJ de São Paulo, se recusou a usar máscara e humilhou um agente da Guarda Civil de Santos. O desembargador chamou o GCM de “analfabeto”, rasgou a multa e jogou o papel no chão. Por fim, deu uma “carteirada” e telefonou para o secretário de Segurança Pública do município, Sérgio Del Bel, para que o mesmo “intimidasse” o guarda municipal.
Com a repercussão, que levou o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Marco Aurélio Mello, a afirmar o óbvio: “Na rua, a autoridade é o guarda, não o desembargador”, Eduardo Almeida Prado Rocha Siqueira veio com a versão corriqueira para casos deste tipo: “O vídeo foi tirado de contexto”. Qual contexto é possível extrair de uma gravação daquelas que possa, ao menos, parecer mais “simpático” ao desembargador? Difícil.
Talvez, o desembargador com sobrenome quatrocentão de Sampa chegue ao terceiro degrau do “sou assim mesmo, mas, putz, não podia ter vazado para a internet” e peça desculpas. Se você ainda não percebeu, reflita: quantas vezes no último ano viu algum vídeo de alguém destilando preconceito, racismo, sexismo e, após viralizar, o autor pede desculpas como se isso fosse apagar toda dor e revolta causadas?
O guarda municipal, Cícero Roza Neto, não é analfabeto — é graduado em segurança pública e pós-graduado em direito educacional —, mas, mesmo se fosse, mereceria todo respeito de qualquer cidadão. Cícero já afirmou que não aceita as desculpas, ainda que venham. E não deve mesmo aceitar. No Brasil em que vivemos, embora pareça estarmos andando para trás, não estamos. Por mais que uma parte da sociedade não queira, estamos avançando. Tudo isso vai passar.
O episódio do desembargador não foi o único lamentável desta quarentena. No Rio, cerca de duas, três semanas atrás, um casal também apelou para a “carteirada”, mas de engenheiro civil. Um fiscal da Vigilância Sanitária realizava abordagem em bares lotados, em plena pandemia, e chamou o homem de “cidadão”, pedindo calma e explicando que ele estava fazendo seu trabalho. A mulher interrompe a fala do fiscal e diz: “Cidadão, não, engenheiro civil, formado, melhor do que você”. O fiscal, por acaso é veterinário, tem mestrado e doutorado pela Universidade Federal Rural do Rio (UFRRJ) e é pesquisador na área de sanidade animal. Já o casal... (dá um Google para saber mais).
O nível de soberba da sociedade em que estamos vivendo tem ultrapassado o limite do absurdo. No momento em que deveríamos olhar mais para nós mesmos e entender o que a vida nos propõe com este vírus, temos que dar um espaço para lembrar que podem gritar a vontade, mas não somos melhores que os outros. A lei vale, ou deveria valer, para todos. Não. Não aceitamos mais absurdos e disparates. O mundo está mudando, e quem não percebeu vai ter que chorar de ódio enquanto arca com as consequências.