Sérgio Arruda de Moura: Literatura e engajamento II
Sérgio Arruda de Moura 17/07/2020 20:12 - Atualizado em 24/07/2020 18:44
Concebo a obra de Jorge Amado como intensamente engajada. Há várias formas de engajamento — incluindo a decisão de não se engajar, de se manter dentro das estritas regras da arte e de não abraçar qualquer tendência. Em Jorge Amado, vejo dois tipos de engajamento. Vou classificar assim: o primeiro diz respeito à atividade combativa e política propriamente dita presente principalmente no chamado ciclo do Romance de 30 e que se mantém com outro viés até o fim; o segundo diz respeito à adesão incontestável aos valores culturais genuinamente brasileiros a partir dos tipos baianos, que é uma forma de engajamento menos explícito e mais sensualista, e de apelo mais geral. Este aspecto é o mais identificado com o público leitor e intensamente marcado pela produção midiática quando adapta sua obra para a televisão e o cinema.
Embora sua obra esteja identificada com este apelo, dada a intensa performance plástica e sensualista dos tipos femininos liberais, além dos malandros, mas também dos coronéis, sua obra marca o maior gesto político que um artista pode legar à sua nação: o orgulho e a construção inconteste de uma identidade, no caso, a identidade baiana e, por extensão, brasileira. Na Bahia, seus personagens mais marcantes são relacionados a tipos tão genuinamente comuns que muitos chegaram a se identificar com eles, a tal ponto de protestarem e marcarem o autor com insígnias pouco lisonjeiras.
Mas isso não quer dizer que sua inspiração romanesca aí se encerre, sem cabimento nenhum a qualquer outra análise de orientação mais política.
O ciclo propriamente político marca o engajamento de um militante comunista, que se evidencia no ciclo de romances que dão início à sua carreira de ficcionista. Entre 1931, ano de estreia, até 1937, temos nada menos que "O país do Carnaval", "Cacau", "Suor", "Jubiabá", "Mar Morto" e "Capitães da Areia". Trata-se de um ciclo, dentro do Modernismo brasileiro, de intensa adesão a causas sociais como a fome, a seca, a espoliação do trabalho e do trabalhador, à opressão política. Não há como não relacionar este programa estético a um outro movimento, o chamado Realismo Socialista, corrente que orientava a política de estado comunista na produção cultural, entre elas a literatura, e que se estendeu dos anos 30 aos 60, a era stalinista na União Soviética.
Não é segredo, Jorge Amado foi comunista, e dentro desta orientação construiu significativos personagens. Como comunista, foi preso e exilado, e teve romances seus queimados em praça pública. Como todo comunista deste período, ele foi adepto do stalinismo quando a União Soviética entrou no plano das grandes nações, também por ter combatido as atrocidades do nazismo.
Contudo, tão logo as atrocidades, desta feita, praticadas pelo regime stalinista vieram à tona, ele rompeu com o ideário genocida, de matiz nazista, como ele próprio afirmou, não sem antes seus opositores terem cobrado dele, mesmo de dentro do próprio partido: “O mundo caiu sobre minha cabeça. Fui atacado por muitos comunistas de forma muito violenta. O principal dirigente Arruda Câmara vaticinou que daí a seis meses eu não existiria mais como escritor, como intelectual”, lembrou ele. A fatura desta adesão, como se vê, logo foi apresentada, como costuma acontecer a escritores que marcam demasiadamente sua vida e obra a uma causa, a uma ideologia.
O comunismo costumava orientar, em terras alheias, a forma que a obra deveria assumir. Por ocasião da repercussão do romance "João Miguel", de Rachel de Queiroz, também comunista por um período, ela foi interpelada por um agente do partido que criticou o escopo pouco revolucionário de seu protagonista. Foi ali que ela, indignada, reavaliou sua adesão.
Também Sartre, e antes dele Albert Camus, romperam com o stalinismo e reavaliaram sua postura ideológica frente à ideologia comunista. É Jorge Amado que, de sua parte, declara sobre a questão: “Eu já vinha dizendo que, sem democracia, não se pode construir o socialismo. O coletivo não é o oposto do indivíduo, como foi nestes países [URSS]. Sem considerar o indivíduo ser humano não se pode pensar em socialismo. O que vai existir é, sempre, uma falsificação. São coisas que, para mim, ficaram claras, dentro de um processo sofrido, longo e cruel”.
“A ideologia é uma merda”, liquidou ele a fatura, e sua glória literária prosseguiu, sem abrir mão de personagens contestadores e inconformistas, dentre os quais, destaco Pedro Archanjo, de "Tenda dos Milagres", de 1968, romance do mais fino rigor político e contestatório.
Seus protagonistas, de todos os ciclos de sua obra, são todos libertários e inconformados, e lideram o inconformismo, incitando a luta contra a opressão oficial dos poderosos e dos donos da produção, inclusive a cultural.
Por engajamento na literatura, concebo a literatura que, sem fazer concessões a pessoas ou instituições, se ergue como força de orientação de uma época.

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