Sérgio Arruda de Moura: Münchhausen e o presidente
Sérgio Arruda de Moura 09/07/2020 20:05 - Atualizado em 24/07/2020 18:38
O documentário “Mamãe morta e querida” (Mommy dead and dearest, 2017), de Erin Lee Carr, fala sobre o drama real vivido até recentemente pela jovem americana Gypsy Rose Blanchard, que aparentava fragilidade em função de inúmeras doenças alegadas pela sua mãe, Dee Dee Blanchard. Construíram suas identidades de personagens trágicos e desafortunados pela doença, em romarias sucessivas por consultórios médicos e internações hospitalares, tudo à mercê da compaixão pública.
Mas eis que, a pedido seu, Dee Dee foi morta brutalmente a facadas pelo namorado de Gypsy, diagnosticado como bipolar. O filme mostra que Gypsy foi vítima da síndrome de Münchhausen ("por procuração" ou transferida), em que a pessoa que cuida de uma criança exagera as suas doenças ou a faz adoecer, para despertar empatia e receber a atenção das pessoas próximas ou não. No caso, Gypsy foi vítima de sua própria mãe e participou da farsa por empatia, ou forçada, pelo transcurso doloroso da opressão da mãe sobre ela. De doente, ela não tinha nada. Gypsy procurou se desvencilhar de sua mãe em mais de uma oportunidade, mas era sempre “capturada” de volta, até por ter obtido de um advogado um documento legal forjado em que se declarava a incapacidade mental da menina
Ou seja, Gypsy pediu socorro.
O filme, montado a partir de depoimentos tomados dos personagens reais que viveram a história, arrepia, principalmente por sabermos que não se trata de ficção. No documentário, o sereno depoimento de Gypsy mostra uma pessoa bastante equilibrada, consciente do crime que cometeu. A justiça americana, sempre draconiana, a sentenciou a apenas 10 anos de reclusão, enquanto que o namorado pegou perpétua.
A princípio, nos perguntamos: há justificativas aceitáveis para se matar a própria mãe? O parricídio, como o matricídio, parece atentar mais severamente contra a natureza humana do que qualquer outro crime. Contudo, a psique humana é um poço sem fundo, e aprisiona o ser sem que ele se dê conta.
É que a história de Gypsy e a de sua mãe, Dee Dee Blanchard, é a de vítimas de uma doença de ordem psiquiátrica, que consiste num transtorno factício, ou seja, o indivíduo finge estar doente, ou causa a si mesmo doenças ou traumas psicológicos, tudo para chamar a atenção ou simpatia, comiseração pública, especialmente em tempos de internet. No caso em questão, a mãe transferiu para a filha os transtornos, administrando nela medicamentos de forma abusiva e criando relatos falsos para os médicos em consultas, o que sempre os confundia.
A síndrome, diagnosticada e batizada pelo médico britânico Richard Asher, em 1951, em alusão ao barão de Münchhausen, célebre desde o século XVIII por ser um mentiroso contumaz, é assim uma doença psiquiátrica grave já descrita e com indicações de tratamento.
Pois bem. Tenho a impressão de que podemos evidenciar a síndrome de Münchhausen em um plano bem atual, de um certo presidente psicopata e genocida. Ao criar a fantasia de que governa, ele vem fazendo uso de tudo quanto é recurso para parecer tal como sempre se apresentou. Ganhou adeptos e os segurou em boa proporção, inclusive no próprio meio político, para se manter. Em uma nação culta e civilizada — ou apenas democrática, de fato —, ele já estaria preso, condenado. Em outros, pendurado numa corda.
Mais eis que... não. Nada disso aconteceu. Ele resolveu adoecer toda a nação, em todos os sentidos que a palavra doença carrega. E, agora, inventou uma doença imaginária, que ele não crê ser doença. Ele está com Covid-19, o terrível mal atual que acomete o organismo, o mais frágil, em escala pandêmica — o que dá a dimensão do problema. De doença mais ou menos tratável, ela se tornou a pandemia que mais matou, pelo menos neste século. E ainda matará muito mais.
Sua doença imaginária, criminosa e calculada veio a pretexto de receitar a cloroquina — tão somente. Deixasse nas mãos de sua política criminosa, e toda a nação estaria doente, como doente é e está o seu “gado”, terrível metáfora usada para caracterizar os que resolveram — por índole moral perversa — aceitá-lo sem restrições como grande líder.
O barão de Münchhausen, além da síndrome de mesmo nome, define bem o caráter do presidente. De mentiroso contumaz, produtor de fake-news em escala industrial, falsário e oportunista, quer o país inteiro de joelhos. E para isso, lança seus últimos factoides para os últimos suspiros que ainda lhe restam.

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