Edgar Vianna Andrade
15/06/2020 17:39 - Atualizado em 24/07/2020 18:24
Parece que está se estabelecendo um novo normal com a pandemia causada pela Covid-19. No início, vários governantes não levaram a gravidade da pandemia na devida conta. O povo acatou as orientações daqueles mais responsáveis. Na China, isolamento e confinamento foram compulsórios. A virose foi controlada no Oriente, causando mais estragos na Europa ocidental, nos Estados Unidos e Brasil. Nestes dois últimos países, os presidentes zombaram do vírus. O do Brasil sempre se revelou cético em relação a ele. Agora, a população brasileira parece ter se cansado de ficar em casa. Saindo do isolamento físico e formando aglomerações, o risco é de uma segunda onda. No Brasil, por enquanto, a onda é uma só, já que a curva segue subindo. O novo normal se assemelha ao velho normal.
Terra desolada é o título de famoso poema de T.S. Elliot, lançado em 1922. Trata-se de um dos marcos do modernismo. Apesar do título apocalíptico, ele não aborda nenhuma situação de catástrofe. Nada tem a dizer, indiretamente, para a Covid-19. Diretamente, nem mesmo da gripe espanhola, entre 1918-20. Por mais devastadoras que têm sido as epidemias, nenhuma delas chegou a ameaçar a humanidade de extinção. Comento o filme “A hora final”, arrolado entre aqueles que mostram cidades desertas e dos quais fiz apenas um registro na semana passada.
“A hora final”, dirigido por Stanley Kramer em 1959, é um filme de profunda melancolia. Depois de uma guerra nuclear não mostrada no filme, a humanidade se restringe à Austrália. Quando as potências nucleares se exterminaram, um submarino norte-americano estava em operação. Ele emerge em vários pontos do oceano Pacífico, mas só encontra atmosfera contaminada pela radiatividade, até chegar na Austrália. Lá, é possível ancorar.
Gregory Peck faz o papel do comandante do submarino. Na Austrália, ele vai se encontrar com a Moira, representada pela bela e opulenta Ava Gardner, uma mulher divorciada e alcoólatra. Resultado da guerra, presume-se. Como tivesse acabado de perder uma parte do corpo, o comandante se ludibria dizendo que é casado e tem dois filhos. Os três morreram. Moira se interessa por ele ao se conhecerem. Anthony Perkins é um jovem oficial australiano casado com Mary (Donna Anderson). O casal acaba de ganhar uma filha.
Finalmente, Fred Astaire (Dr. Osborne) representa um cientista amargurado por tudo o que aconteceu. A ordem é voltar aos Estados Unidos, ou ao que sobrou dele, para uma inspeção. Perkins e Astaire integram-se à tripulação. Em São Francisco, Califórnia, a cidade é examinada de longe. Um marinheiro nascido e criado lá se joga no mar e nada até a costa. Ele está naquela fase psicológica em que a morte é aceita com resignação. Ele poderia evitá-la naquele momento, mas prefere ficar. Ocorre então uma cena inusitada: o submarino emerge e conversa com o marinheiro, que pesca num ancoradouro. Claro que é o comandante falando por um microfone.
A tripulação recebe um sinal da terra e um marinheiro é preparado para localizá-lo. Em filmes de Hollywood, algum sobrevivente estaria pedindo socorro. Mas, em “A hora final”, quem emite o sinal é um telégrafo que ficou preso numa corda de persiana deslocada pelo vento. Tudo está deserto. Todos sucumbiram. Ali, não resta nada.
O jeito é voltar para a Austrália. Nesse retorno, o Dr. Osborne destila toda a sua desesperança com a humanidade. Tenta explicar de forma simples o que aconteceu. Não fala de fissão do átomo, mas da estupidez humana. Reclama das explicações fáceis. É um homem amargo. Na volta, ele ainda se torna campeão numa corrida de automóveis. Mas é tudo desespero. Gregory Peck se entrega aos encantos da voluptuosa Moira. Eles aproveitam a vida. O clima é de que todos morrerão. De fato, Osborne se suicida. Perkins prepara um forte sonífero para o casal e a filhinha. A tripulação do submarino deseja voltar aos Estados Unidos. Todos morrerão. Moira fica sozinha. A humanidade sucumbirá com a radiação. Várias espécies de plantas e de animais também morrerão.
A Terra ficará desolada. Não haverá ninguém para saber o que houve: uma guerra sem vencedores e vencidos. Nenhum patógeno, que se saiba, seria capaz de um resultado desses. Talvez nem mesmo todo o arsenal nuclear detonado. Mas o filme é um dos libelos mais pungentes contra a guerra em tempos de bombas atômicas.