No início do século XX, um homem, provavelmente cientista, é chamado ao observatório de Ottershaw, em Londres, onde examina explosões na superfície de Marte. Mais tarde, um meteoro de forma cilíndrica cai nas proximidades da casa do narrador inominado. O cilindro se abre e de dentro dele saem veículos que caminham sobre tripés — os tripods. Esses veículos transportam armas das quais saem raios fulminantes que destroem tudo o que encontram pela frente. Os marcianos estão invadindo a Terra.
O cientista, então, foge com sua mulher para Leatherhead, mas volta para devolver a carruagem que tinha pedido emprestada. Honestidade em meio a uma guerra. Começa a haver a evacuação em massa de Londres, então mais que a capital da Inglaterra, mas considerada o centro do mundo, como hoje se considera Nova Iorque.
O narrador acaba encurralado numa casa em ruínas e nota que os marcianos estavam se alimentando diretamente do sangue humano. Depois de peripécias, o narrador consegue retornar a uma Londres deserta e nota que as plantas trazidas de Marte e os próprios marcianos estavam morrendo contaminados por uma bactéria da Terra para a qual não tinham imunidade.
Em resumo, este é o enredo de “A guerra dos mundos”, romance de ficção científica escrito pelo conhecido autor britânico Herbert George Wells e publicado em capítulos no ano de 1897. No ano seguinte, os capítulos foram reunidos em livro, que serviu de base a roteiros de pelo menos dois filmes bastante conhecidos e à célebre narração de Orson Welles numa emissora de rádio. Os ouvintes acreditaram numa invasão tal o realismo da narração
O que pouca gente sabe é que a ficção nasceu de uma conversa com o irmão do autor sobre a invasão britânica da ilha da Tasmânia, na Oceania. As doenças europeias foram mais letais para os povos indígenas que as armas brancas e de fogo. No corpo a corpo, os nativos estariam em desvantagem diante dos europeus por não contarem com armas de fogo. Mesmo assim, as táticas de guerra em terreno conhecido poderiam suplantar as armas de fogo. Mas as doenças transmitidas por vírus, bactérias e protozoários eram invencíveis, como mostrou o historiador Alfred Crosby em “Imperialismo ecológico – a expansão biológica da Europa: 900-1900” (São Paulo: Companhia das Letras, 1993).
Imaginemos agora que portugueses, espanhóis, franceses, holandeses, ingleses e outros povos ocidentais encontrassem na América e na Oceania povos com resistência a doenças transmissíveis desconhecidas dos europeus e que os invasores – e não os invadidos – fossem contaminados e morressem. De certa forma, foi o que aconteceu com os cruzados europeus no Oriente Médio entre 1096 e 1272, com as oito ou nove cruzadas. No afã e reconquistar o Santo Sepulcro, os europeus travaram guerra contra os muçulmanos e não contaram com a ajuda de doenças infecciosas, já que os povos invadidos conheciam as doenças europeias além de outras e eram resistentes a elas.
No Oriente Médio, os cruzados europeus perderam a guerra contra os muçulmanos. A rigor, só no século XX eles conseguem derrotar os povos de religião islâmica se aproveitando das guerras internas do Império Otomano e das poderosas armas de fogo ocidentais.
Em “Pandemia: covid-19 e a reinvenção do comunismo” (São Paulo: Boitempo, 2020), seu mais recente livro, o filósofo marxista Slavoj Zizek observa, a propósito do livro de H.G. Wells, que “os ‘invasores marcianos’ impiedosamente explorando e destruindo a vida no planeta somos nós mesmos, a humanidade, e, afinal, todos os dispositivos dos primatas altamente desenvolvidos para se defender de nós fracassaram, e agora somos ameaçados ‘pelas coisas mais humildes que Deus, em sua sabedoria, colocou sobre a Terra’, vírus estúpidos que só se multiplicam cegamente – e sofrem mutações.”
Há casos de resistência e mesmo de vitória dos mais fracos contra os mais fortes. O raquítico Davi venceu o gigante Golias. Os guanchos, povo nativo das ilhas Canárias, resistiram aos espanhóis numa secular guerra sangrenta e impiedosa no século XIV. Com a proteção da legislação indiana, o povo que habita soberano a ilha de Sentinela do Norte vem mantendo a liberdade. Seu estilo de vida é paleolítico. O último ocidental a tentar entrar clandestinamente na ilha foi um pastor evangélico. Os nativos não hesitaram em liquidá-lo com uma flechada.
O novo coronavírus será vencido, quer pela imunidade natural dos humanos quer por uma vacina. Mas até que a vitória humana ocorra, a pandemia terá causado muitas mortes e feito muitos estragos econômicos. Do ponto de vista político, ele revelará os governantes anti-humanistas.