Sérgio Arruda de Moura: Literatura e guerra
Sérgio Arruda de Moura 05/06/2020 19:58 - Atualizado em 17/06/2020 18:05
A literatura parece se contentar consigo própria. Não é sempre que ela quer dizer alguma coisa, além de falar de si própria. Mas, vá lá. Sempre sobra alguma coisa além dela própria, mesmo quando aparentemente não diz nada.
É o que percebemos nesta obra prima que é “Terra sonâmbula” (1992), do escritor moçambicano Mia Couto. Ao mesmo tempo que ambienta a história do miúdo Muidinga e do velho Tuahir em cenários de ruínas e desolação provocados pela guerra, o que aparece num plano maior é a provocação de uma outra história, uma história lida a partir de cadernos abandonados em fuga.
Está aí uma esplêndida metáfora: a narrativa contida nos cadernos é sanguínea, pois ela dá vida ao sonho necessário de Muidinga, a um projeto de vida numa terra arruinada e silenciada pela guerra. O sonambulismo contido desde o título nos dá a chave da leitura: o sonâmbulo levanta-se e não sabe aonde está indo, perigosamente para um precipício. É isso que sobra de uma nação após uma guerra, especialmente uma guerra entre irmãos.
Muidinga busca sua identidade de menino – quem não busca uma de fato? Primeiro ele pensa ser Juinhito, irmão de Kindzu, o narrador dos cadernos; depois pensa ser o filho perdido de Farida, mulher com história típica do colonizado tiranizado pelo colonizador. A trajetória de Farida confunde-se com a busca do seu filho Gaspar, nascido de um estupro, e que entregou na Colônia por não poder criar. Seria Gaspar o miúdo Muidinga?
“Os escritos de Kindzu lhe começavam a ocupar a fantasia”. Com esta sentença, começamos a ler dois romances. É que literatura é fantasia. Quem disse que fantasiar é inútil? Os que não se entregam a ela.
Muidinga é uma vítima da guerra, traumatizado, esquecido de sua história, recompondo-a a todo custo, com a ajuda de Tuahir e dos cadernos de Kindzu. Este é um dos sentidos possíveis, de um romance que recupera os falares das terras de Moçambique, dentro de uma lógica não racionalista.
Um rico inventário das tradições tribais, tais como a forma como Siqueleto, o último habitante de lugar assolado pela guerra, se mata, e como ele imagina que renascerá a partir da gravação do seu nome com uma faca no tronco de uma árvore. Ou o fato de Farida ter sido gêmea e por isso ter sua irmã sido morta e ela expulsa da aldeia junto com sua mãe. Farida engravida do português, vai ter um mulato, outra maldição para ambos, melhor dizer que ele era albino... Ou como Nhamataca queria honrar sua história construindo um rio com suas próprias mãos que serviria a todos menos à guerra.
Uma atmosfera de realismo mágico impregna a narrativa, especialmente no navio encalhado, onde Farida resolvera refugiar-se e onde foi encontrada por Kindzu. Mas, a realidade da guerra está por toda a parte.
Intercalando capítulos entre os cadernos de Kindzu e o trajeto dos dois sobreviventes, “Terra sonâmbula” (1992), de Mia Couto, se faz como obra necessária. Eu imagino os efeitos de uma narrativa destas após o fim de uma longa guerra, que por sua vez sucedeu a uma também longa “experiência” colonial.
O programa de episódios históricos de Moçambique não aparecem nem são tratados no romance, por isso não se trata de um romance histórico. Em 1992, ano de lançamento de “Terra sonâmbula”, Moçambique saía de um longo período de 28 anos de conflitos. Em 1964, teve início a guerra de independência, quando o país se mantinha como colônia portuguesa já há quatro séculos. Ao cabo de 10 anos, termina a guerra e mais um ano se liberta definitivamente do status de colônia. Mas eis que uma outra guerra, desta vez mais sangrenta, tem início entre as forças majoritárias que haviam encabeçado a guerra anterior. Foram 16 anos, em que pelo menos 1 milhão de mortos foram computados.
Esse conhecimento não é gerado dentro da narrativa. Nem o seu desconhecimento desabona a leitura.
Qual seria, então, o quadro de leitura de um romance que assim se intitula, sabendo ainda que seus protagonistas circulam no espaço arruinado por uma guerra? É que a guerra é em si um espaço de enunciação pleno se semânticas, tais como morte, fome, devastação. E daí os órfãos e desafortunados sobreviventes quando ela acaba. É nesse quadro de penúria total que os valores máximos vêm à tona, tais como solidariedade, busca e retorno ao lugar, reconstrução.
Em “Terra sonâmbula”, o bem maior que resta é a recuperação da memória do que foram um dia. É nesse espaço que a literatura ganha relevo. E nesses termos, “Terra sonâmbula” é um romance prototípico, que encarnará o espírito de uma nação nova e independente no cenário mundial, responsável dali por diante do seu próprio destino.

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