Sérgio Arruda de Moura: Esquerda e Linguística
Sérgio Arruda de Moura 29/05/2020 22:55 - Atualizado em 03/06/2020 18:07
A palavra deve soar estranha – linguística –, mas não deve assustar. Algumas ciências têm nomes estranhos. Hoje em dia, o que está causando estranheza é a palavra “esquerda”. Surgiram até uns neologismos tais como “esquerdopata”, “esquerdoide”, “esquerdomania”. Parece que muitos aderiram ao comando do anjo torto do poeta Drummond quando lhe disse “Vai, Carlos, ser ‘gauche’ na vida”.
Para os que não sabem, “gauche” significa “esquerdo” em francês. Mas não sei se Drummond estava se referindo apenas ao sentido “marginal” contido na palavra, ou se com isso queria indicar “esquerda” política. Só que agora a palavra “marginal” embolou o meio de campo. O “esquerdoide” é necessariamente marginal no sentido vulgar? Ou seria “à margem” do padrão, mas não necessariamente delinquindo?
A Linguística é a ciência que estuda os fenômenos da linguagem articulada, ou seja, a língua falada, principalmente, mas também a escrita, e pode nos ajudar no embate, não definindo termos, que esta não é sua tarefa. A Linguística compreende a língua como um instrumento de construção da realidade e não como instrumento de descrição dela. Afora isso, são os fatos de língua que precisam ser descritos. Por exemplo: nós falamos em acordo com um rol de circunstâncias tais como escolaridade, região de origem, idade, profissão, até sexo. Ou seja, ninguém é igual a ninguém. A singularidade do indivíduo é um traço de sua humanidade. Todos são diferentes na unidade. A linguística vê nisso um trunfo.
Há alguns anos, na minha tarefa de professor e orientador de trabalhos desenvolvidos quase sempre a partir da área da linguística, concluí que a disciplina tem uma orientação inclusiva. Tudo tem a ver, inicialmente, com os trabalhos de William Labov, um dos mais proeminentes linguistas americanos. Na verdade, ele não só era um dos fundadores da sociolinguística, como insinuou que o nome mais adequado para a linguística seria exatamente este, uma vez que o estudo da língua fora dos domínios do falante e da sociedade seria uma incoerência.
Em uma pesquisa notável de início dos anos 1970, ele concluiu pelo critério da variação linguística, e que no seio da língua inglesa falada, há um outro padrão linguístico que ele chamou de African-american English vernacular, ou Black English”, ou o inglês afro-americano criado dentro da comunidade dos negros da mais completa e multicultural das cidades do ocidente, Nova York.
Crianças negras e hispânicas eram um caso perdido dentro do sistema educacional americano porque não conseguiam aprender o inglês padrão, o que, acreditava-se, decorria em função da pouca exposição delas a ambientes de leitura e de leitores e de fraca vivência cultural que proporcionam o teatro, museus, cinema, exposições, enfim, ambientes dotados de aparelhos culturais clássicos protagonizado por mulheres e homens cultos. Sua pesquisa mostrou que não, que espaços segregados, ao contrário, recriam a cultura e, consequentemente, favorecem o surgimento mais intenso do aspecto multicultural das línguas que, prontamente, se disseminam em variantes. Cada língua é resultado de intensas trocas sociais, e criam cultura e modos de falar sempre distintos e ricos.
Eu diria que Labov é de esquerda, pois não se conformou com o status sociolinguístico atribuído às comunidades negras e hispânicas. Ao recusar falsos compêndios científicos para confirmar o que já havia virado doutrina, ele produziu conhecimento dentro de um território neutro – sim, a ciência é um campo neutro, embora resulte de uma decisão política para que ela floresça e produza bem-estar.
A sociolinguística aliada à pesquisa esclareceu e eliminou um preconceito, ou pelo menos disponibilizou estudos para que não proliferasse o senso comum que, no caso em questão, era excludente.
Esquerdistas e não-esquerdistas, quando não têm trato com a ciência, deveriam ler sem receio de desviar o olhar em sentido oposto ao lado de sua crença ideológica.
A esquerda é a que mais rejeita o pensamento excludente, aquela que mais se entusiasma pela mudança, pela heterodoxia do pensamento científico. É evidente que ela também exacerba, havendo mesmo ditas ditaduras de esquerda. Há esquerdistas que não leem, e quando leem é o mesmo já lido, temerosos de virarem seu pensamento mesmo que apenas um grau à direita, ou em direção ao centro. Os extremos são teimosos e dogmáticos e rejeitam o pensamento científico. São xiitas, ou fundamentalistas. Um extremista abundante hoje no Brasil é aquele que quer “cientificar” a Bíblia, sem tê-la lido, e esses são todos de direita. Outro exemplo é aquele que quer alinhar a família ao seu papel reprodutivo: extrema direita.
Por isso que, pra mim, esquerda só a científica, e não a dogmática. A esquerda é a que mais se identifica com uma visão holística da realidade, e não se oporá a liberdade de ninguém, mesmo que este se coloque como um empecilho ao seu progresso. A esquerda é a que mais se filia à democracia. O mundo ortodoxo já deu mostras de que não é sustentável.

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