Sérgio Arruda de Moura: O 'é' da coisa
Sérgio Arruda de Moura 22/05/2020 15:56 - Atualizado em 03/06/2020 18:01
Completamente trôpego, o ano vai chegando ao meio. Ainda faltam longos 40 dias, dias decisivos, pouco menos de um mês e meio de contágios, mortes e desolação por conta da mais nova ameaça que nos ronda, metaforizada num vírus, o grande penetra do Globo que veio acabar com as festas da Esperança. Junho é, talvez, o mês mais simpático do calendário, mas neste ano, ele virá como palco dos desdobramentos de uma tragédia, que se arrasta já há mais de 60 dias.
Mas, por enquanto, é maio, mês também gentil, ameno, feminino, poético, quando o ano já disse a que veio: brando ou feroz.
Mês de mães, noivas, do trabalho, da abolição, de Nossa Senhora, da língua nacional, do gari, de fim da Segunda guerra e, agora, do auge do corona em território brasileiro. Mês da ignomínia, mês em que o falso líder e falso chefe do estado brasileiro, disse mais m...
Nada disso importa mais do que se manter vivo e ligar o alerta contra todas as demais falsas lideranças, desassistidos que estamos de justiça, de soberania, de vergonha, de projetos, de esperança. Só nos tem sobrado o pior.
Em todos os exercícios de futurologia que me dei o trabalho de executar, nada me saiu de auspicioso. Está em crise o humano do homem. É como se não houvesse mais esperanças, porque não temos mais quem a proponha. Não há mais filosofias nem literaturas neste exato instante, só uma teologia da compaixão e da caridade. Tenho compaixão dos milhões que estão mergulhados na pobreza extrema e dos que nela estão chegando, de volta, ou de forma inédita. E ao mesmo tempo, um ódio quase mortal (que tento dissipar) dos que ainda se comprazem com o estado a que as coisas chegaram.
A maior ameaça ao homem é o próprio homem. Esta lição já havia sido aprendida, mas agora estamos tendo um reforço de aprendizado, bem ilustrado, desenhado.
Andar na rua a uma distância de metro e meio, no mínimo, é bem ilustrativo desta nova ordem. Sentar no banco de uma praça com um intervalo no meio, desocupado, também. A adaptação de lugares públicos considerando a necessidade vital de manter a devida distância, sem apertos de mãos e abraços de corpos, são apenas alguns aspectos desta mútua ameaça que caiu com ares de guerra nesses últimos meses, na história da humanidade. Aproximar-se de alguém com desejo, ou em solidariedade ou em esforço conjunto para a execução de uma tarefa qualquer se transforma em ameaça de morte, pelo menos até o fim sólido da pandemia, após, talvez, a invenção de uma nova vacina, das tantas que já temos.
Por mais bactérias e vírus que haja no mundo, a ameaça maior sempre seremos nós mesmos.
Não que já não soubéssemos disso. E esta pandemia pode ser apenas um trailler de um filme em gestação, longa-metragem em preparo sobre a real ameaça que nos atormenta.
E isso não é apenas uma metáfora, como o é a guerra, por exemplo. A guerra, que ceifa vidas de forma trágica, é apenas uma metáfora, pois que se pode dizer que quem mata o faz por uma causa, em uma contenda ideológica, por uma abstração tal como soberania, mesmo que isso em nada diga respeito ao soldado combatente. Mas é o homem, sim, quem mata o outro.
Outro dia, ouvi de não sei quem alguma consideração sobre a carga semântico-filosófica que cabe no verbo “ser” para o pensamento. Ajunto o seguinte: o homem é o único animal que “é”, e não apenas “existe” como os demais animais. Se só existíssemos, pura e simplesmente, a carga seria menor. Pastaríamos como os ruminantes e faríamos ninhos nas copas das árvores como os pássaros. Não importa o falso horror da cadeia alimentar, do maior devorando o menor, porque a natureza tem seu plano longe da razão inventada no mundo artificial dos humanos. Mas não, ao contrário de só existirmos, tivemos de “ser”. E o “ser” nos atormenta, nos distingue dos demais homens, nos coloca em outro plano, enfim, nos faz nos sentirmos diferentes uns dos outros.
E aí mora o perigo: Eu “sou” alto, e não “sou” baixo; “sou” branco e não amarelo; católico e não muçulmano; “sou” meritoso e virtuoso, ao passo que você não “é”... E o pior "é" vem à tona, quando o principal “é” da coisa é a mortalidade, comum a todos. Mas, nem isso nos abala. Há quem pense estar salvo, porque se declarou simplesmente “ser”, sem ação, sem fazer.
Mas o humano acobertaria um único sentido de “ser”, isso que se busca e não se encontra. Se uma nova era de Aquarius é que se esperava, esta chegou. É a presente era. Temos que procura o “é” da coisa, porque o verbo “ser” não está à toa em nosso vocabulário de humana vida.
Repito pra mim mesmo desde Clarice: “Quero apossar-me do é da coisa”.
Não se pode ignorar o instante preciso em que o “é” se manifesta. Em cada “instante está o é dele mesmo”. “Quero captar o meu é”, deveríamos todos repetir.

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