Ronaldo Linhares
10/05/2020 17:59 - Atualizado em 19/05/2020 18:58
A casa tinha vários porta – retratos
que contavam histórias.
Dizem que quando ficamos saudosistas é porque nos aproximamos do fim, mas pode ser também sinal da quarentena da pandemia. O fato é que, nela, costumo pensar nas coisas importantes que vivi. No entanto, elas costumam ser tristes, infelizmente, embora bem menos do que o nosso país e seus vírus.
A saudade, como a própria vida, é ambígua. Pode nos ser doce ou doída e também se apresenta sorrateiramente, quando pensamos que ela estivesse inviolável, no fundo do velho baú que, dizem, guardarmos num canto perdido dos nossos corações. O fato é que as lembranças de uma pequena viagem que fiz num longínquo verão de 1993, de repente, me envolveram de uma nostalgia, que aos poucos foram se traduzindo em nítidas imagens. Como num filme em que compulsória e misteriosamente tivéssemos que rever.
Meu filho havia me chamado para levá-lo à praia. E, como era meio da semana, me estranhei ao atender de pronto ao seu pedido, pois teria de me afastar do trabalho no escritório. No caminho, já sabia que a viagem me levaria, de forma quase inconsciente, a visitar um lugar para mim especial, talvez pela última vez. Era fevereiro, os jornais anunciavam que as águas de março podiam ser fatais para a bela mansão de Atafona.
Chegando à praia, fui logo rever a casa, embora soubesse que os seus proprietários lá não estivessem. O velho caseiro, que antes sempre encontrava cuidando dos jardins, desta vez estava na frente, contemplando um mar que curiosamente me pareceu tão estranho. Pedi para entrar e, apesar dos móveis e objetos estarem todos nos seus devidos lugares, a sensação de estranheza, também lá dentro, persistiu. Faltava, quem sabe, apenas abrir os janelões e deixar entrar a luz do sol, que sempre nos foi companheira. Ou então faltava abrir o portal de entrada e sentar à mesa da sala de jantar, que, sendo um nível mais elevado, nos deixava ver a linha do horizonte, de um mar sempre verde, pois visto após a faixa das ondas. Ou ainda faltava sentar confortavelmente e simplesmente deixar o vento passar, bem sentindo a brisa e as coisas do mar.
Mas, aos poucos, fui percebendo que faltava mais do que a presença dos donos e dos amigos naquela casa para preencher-me a sensação de vazio. Afinal, ali o mar sempre foi espetáculo. E nos brindava como parceiro nas longas conversas, onde o motivo principal, o prazer de cultivarmos o sentimento de amizade regado etilicamente em doses generosas e da melhor qualidade. Aos poucos também fui percebendo que, apesar de tudo, a natureza é sábia. Havia a tristeza de sentir que aquela casa nunca mais seria a mesma. Era como se ela tivesse sido traída ou violentada pela própria natureza antes tão amiga, hoje tão ameaçadora. Ao mesmo tempo, no entanto, pude sentir que as boas lembranças eram mais fortes. E que a vida daquela casa não estava propriamente em sua bela arquitetura.
Como arquiteto, poderia descrever prazerosamente vários detalhes da casa e mesmo a imponência de seu mobiliário. Onde se destacava para mim um secular e enorme banco de madeira de arte Cuzquenha, cujos pés foram esculpidos na forma de patas de lhamas. Ou mesmo o sofá recheado de penas de ganso para o “justo, muito justo, justíssimo” conforto, inclusive deste seu hóspede cativo. Mas, sobretudo, apreciava os porta-retratos com fotografias dos familiares daquela casa. Cujo patriarca, talvez por fazer parte de nossa história, parecia querer nos contar estórias.
De certa forma, depois da visita, saí acreditando que não haverá nenhum mar ou oceano capaz de destruir uma casa que, diante dos momentos de alegrias proporcionados, guardamos em nossos corações. Nem tampouco será capaz de afogar minha gratidão aos amigos que tão bem souberam me proporcionar aqueles felizes momentos.
Restou-me ainda a certeza que, ao contrário das águas do mar que destruíram aquela casa, são doces as saudades que ela me deixou.