A essa altura do campeonato, o Brasil já ultrapassou a marca oficial dos 10 mil mortos por Covid-19. O último informe do Ministério da Saúde indicava que tivemos 751 mortes em 24 horas, o que nos colocava em segundo lugar no ranking global de mortes diárias — superados apenas pelos Estados Unidos. Enquanto me atualizava sobre a escalada da pandemia, lembrei de um jornalista que escutei dias atrás se queixando publicamente da imprensa que “só noticia morte!”. Dizia ele que a mídia não falava de outra coisa e que era preciso também mostrar coisas boas, que era necessário considerar o comércio e outras coisas mais. De fato, creio, é necessário considerar o comércio e todas as questões econômicas. Espanta-me é que as pessoas que argumentam pela abertura do comércio e pela “salvação de empregos” não tenham se mostrado indignadas com as medidas parcas adotadas para garantir a preservação econômica. Países mais pobres do que nós foram muito mais ousados na hora de proteger seus compatrícios. Aceitamos como dado que o governo fez o que pode, mas a impressão é de que poderia muito mais — com sofrimento e dificuldades, claro, mas com ações que materializassem o discurso de real preocupação com a salvação das empresas. Fico com a impressão de que tivemos uma aula prática sobre o pior que pode acontecer quando se arde de paixão por um modelo liberal tacanho.
Também me atormenta uma constante indagação: sobre o que mesmo a mídia deveria falar quando mais de 500 pessoas morrem todos os dias no país? Quando uma hecatombe está em curso, sugerir assuntos “leves” soa como cinismo irresponsável.
Na tarde de ontem, antes da divulgação dos dados sobre o avanço da Covid-19, assisti a uma entrevista com a antropóloga Daniela Velásquez, que está na França desde antes do período de confinamento. Ela estabeleceu uma cronologia para explicar que a França passava por um momento de grande agitação em virtude dos movimentos sociais que se opunham às reformas liberais do governo Macron. Foi nesse contexto que o país entrou em contato com a pandemia. Era o início da primavera e as pessoas não estavam exatamente dispostas a aceitar as orientações de distanciamento social. O presidente, buscando alcançar um consenso, estabeleceu um discurso que interpretava a situação francesa como uma guerra sanitária onde sacrifícios seriam impostos. As medidas de isolamento e as restrições de liberdades eram uma novidade em tempos de paz, mas eram as medidas necessárias para uma guerra contra o coronavírus. O chamado à responsabilidade social e ao compromisso individual que cada cidadão tinha — com sua própria vida e também com a vida de seus compatriotas — foi o tom da narrativa que se estabeleceu para alcançar um consenso sobre como o país enfrentaria a Covid-19.
Mais tarde, “fui” — esse verbo que ganha novos sentidos em contexto de pandemia na era digital — a uma festa virtual de aniversário. Como não podia ser diferente, em determinado momento o assunto em pauta foi a pandemia. Uma engenheira que morou na Suécia falou sobre como o governo de lá estava lidando com a situação. O distanciamento social foi recomendado, mas não houve imposição de isolamento por parte do governo e as atividades ficaram próximas ao “normal”. A Suécia possui suas particularidades — como as regras de etiqueta, as cidades não tão populosas, uma grande quantidade de domicílios ocupados por apenas um habitante etc —, mas mesmo assim suas taxas de mortalidade em virtude da Covid-19 são muito superiores às taxas dos países vizinhos. Todavia, há uma estratégia governamental. Argumenta-se que os países que impuseram o confinamento terão problemas na hora da reabertura, então optou-se por não confinar para que os danos da epidemia não se desenrolem por muito tempo. A China já está em processo de reabertura e alguns países europeus também estão ensaiando tal processo — e em ambos os casos a retomada da vida não parece ser tão problemática quanto imaginou o governo sueco. A Suécia, um país com cerca de 10 milhões de habitantes, já contabiliza 3175 mortes e, apesar dos questionamentos às medidas adotadas, o governo do país não foi taxado como “negacionista” e parece administrar a situação sem o fervor ideológico que paira sobre o Brasil.
Assim, entre uma “live” e uma conversa de “festa”, surgiram dois exemplos de nações que encontraram algum grau de consenso para enfrentar a pandemia. Isso destaca a importância de uma liderança governamental minimamente estável. Pois, quando olhamos para fora de nosso contexto para pensar sobre nós mesmos, vemos países mais pobres com resultados mais promissores no combate à pandemia — mas foram países onde os governantes agiram com razoabilidade. É possível pensar também no caso de um país muito rico, os Estados Unidos, onde um presidente instável chegou a recomendar que as pessoas tomassem desinfetante para combater o coronavírus. E muitas pessoas seguiram o conselho do líder máximo de sua nação: tomaram — e morreram. Caminhando pelas trilhas da indefinição e da ambiguidade, na falsa argumentação da oposição dualista entre vida e economia, os Estados Unidos presididos por Trump já se aproximam dos 80 mil mortos, estabelecem recordes históricos de desemprego e contam com uma economia pra lá de abalada. Disseram que prezavam por empregos — não salvaram empregos e nem a vida de dezenas de milhares.
Por aqui, ao que tudo indica, nos afastamos da França e da Suécia enquanto seguimos os passos dos Estados Unidos: na falta de critérios, de medidas e de tirocínio no enfrentamento da pandemia. De resto... bem... de resto eles possuem o Dólar e nós temos o Real... e 1 dólar custa quase 6 reais em nosso país que não salva empregos, que ceifa vidas, que banaliza o caos, mas que segue com uma “esperança equilibrista”.
Carlos Valpassos
Antropólogo – Universidade Federal Fluminense.