A ficção brasileira do século XIX tem poucos pontos culminantes, e um deles, talvez o mais alto, seja o romance “Memórias póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis. Ao se fazer a partir de um artifício ficcional segundo o qual o narrador é um “defunto autor” e não um “autor defunto”, e que ao verme que “primeiro roeu as frias carnes” do seu cadáver a “obra de finado” é dedicada, o romance planeja desestabilizar o modo como se fazia literatura à época. Considere-se também o aspecto de obra em construção, em diálogo permanente com o leitor, como a querer discutir o papel da literatura na vida social. “Escrita com a pena da galhofa e a tinta da melancolia”, o autor Machado, junto com o seu personagem, fazia referência aos grandes autores de sua preferência, entre os quais, Sterne.
O ano de publicação de “Brás Cubas” é 1882, embora os folhetins que o geraram tivessem já sido publicados dois anos antes. O Brasil da monarquia imperialista e do escravismo iniciava uma década que só terminaria bem para a elite aristocratizada cujo traço mais marcante era o desprezo pelo trabalho e a hierarquia rígida de classes, porque é sucedida por outra ainda mais cômoda, republicana com ranço aristocrático e racista.
Esse Brasil desigual, convenhamos, cabe como uma luva dentro das convenções do incômodo que o romance realista quis causar, tal como proposto desde Flaubert, Stendhal e Zola no mesmo século, na França.
“Brás Cubas” é, assim, um romance cru por colocar no centro um personagem dividido entre a ociosidade burguesa e a instabilidade de caráter, esta criada a partir da aceitação tácita do projeto vazio de viver e produzir uma sociedade mais justa. O menino Brás, que mereceu todos os caprichos do pai, cruel com os escravos em criança, aventura-se na juventude com a prostituta Marcela e, antes que arruinasse as finanças do pai, este o envia a Coimbra, onde, estudante medíocre, se diploma em direito. Retorna ao Brasil com a morte da mãe e se isola em uma chácara da família. Convencido pelo pai a tentar uma carreira política como deputado (vejam só!), bastando para isso casar-se com Virgília, ele ainda chega a se apaixonar antes pela bela Eugênia, até descobrir que ela era coxa. “Por que bonita, se coxa? Por que coxa, se bonita”, contradição da natureza levando seus ecos à avaliação da sociedade cruel e hipócrita que Brás tão bem representava. Não se casou com Virgília, que preferiu Lobo Neves, mas, mais adiante, torna-se seu amante. Consciente de sua vida sem propósitos e de seu caráter duvidoso, faz devolver uma moeda de ouro que achara ao seu legítimo dono, tentando com isso a harmonização do caráter. O mesmo não sucede quando ele acha um pacote com cinco contos de reis, ao preferir guardá-lo para angariar futuramente algum benefício maior. Já amante de Virgília, monta uma casa no subúrbio para seus encontros e lá coloca uma antiga criada, Dona Plácida, para que cuidasse dos serviços, que passou a prestar com repugnância diante do que lá se desenrolava. Em troca, Brás Cubas lhe fez um pecúlio com os tais cinco contos. E “foi assim que lhe acabou o nojo”.
Eis o ponto: o capitalismo adentra a intimidade e os afetos, e arruína o caráter. É apenas uma tese, sem ser exatamente um fato inédito na história da humanidade. Mas, é no capitalismo que a prática se regulariza e até lhe passa uma tinta de escassa virtude. E é nesse ponto que este segmento da obra de Machado nos traz inúmeros pontos de comparação com a presente era, num esforço de entender o país e a formação de sua elite. Brás e seus assemelhados representam a geração de brasileiros movida pela compleição social de um Brasil hipócrita e amoral, que se beneficia de um sistema viciado em concessões de privilégios no pior dos mundos de uma realidade excludente por princípio.
“Brás Cubas” é uma espécie de manual de como se pode abusar de uma vida de privilégios e, ao mesmo tempo, um compêndio de filosofia sobre o status quo do humano nas suas contradições, além de um anedotário fabuloso do ridículo das relações humanas capitalizadas.
Estendendo-se em 160 capítulos, curtos todos, o romance tem um ar confessional que, provindo de alguém já morto, não tem compromisso com nada nem ninguém. Não me recordo quem disse, no Brasil é preciso estar já morto para que se confessem segredos.
Por fim, Brás não casou, não engatou uma carreira política, abriu um jornal que não foi adiante, não alcançou a celebridade, nem seu emplasto com o qual almejava alguma glória acima da ciência e da riqueza vingou. Contudo, coube-lhe “a boa fortuna" de não comprar o pão com o suor do seu rosto. Acresce-se que não tendo tido filhos, não transmitiu “a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”.
A atmosfera que reina nas “Memórias” é lúgubre, das mais apropriadas para um autor que amadurecia sua obra e fazia com ela a transição para o chamado realismo, preferindo relacionar sua trama ao estágio que o país aparentava estar — e realmente estava — com ironia, sarcasmo e indiferença — semelhante a que vivemos hoje, aprofundada pela melancolia de uma peste isolando as pessoas, como se elas não se tolerassem.