* Arthur Soffiati
08/05/2020 17:40 - Atualizado em 11/05/2020 19:17
Quando me convidavam a falar sobre literatura e meio ambiente, eu analisava a obra de Rubem Fonseca, entre outras, mas nunca escrevi sobre o tema quando ele era vivo. Agora que ele morreu, no último 15 de abril, faço algo de que não gosto: escrever sobre um autor como se fosse uma homenagem póstuma. Ou seja, valer-me de sua morte como motivação para escrever sobre o que falei durante anos.
O primeiro livro de Rubem que adquiri foi “Feliz Ano Novo” (Rio de Janeiro: Artenova, 1975), na edição que foi retirada de circulação pelo regime militar. Na verdade, a primeira. Tenho hoje uma raridade, portanto. Confesso que não consegui ler o livro, pois seus contos retratam muita violência. Li críticas e assisti a palestras sobre a literatura dele, considerada inovadora na ficção brasileira por seu realismo e brutalismo.
O primeiro livro dele que li de ponta a ponta foi “A grande arte”, também 1ª edição (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983). Trata-se de um romance em que o famoso detetive Mandrake é o personagem central. Inteligente, charmoso, conquistador de mulheres (ele não precisava usar seu charme, pois elas se ofereciam). Mandrake revela um traço que os humanistas estritos classificariam de cruel: ele está empenhado em decifrar crimes para os quais os policiais encontram dificuldades. Portanto, ele está interessado em fazer justiça em favor de vidas humanas ceifadas por criminosos geralmente sórdidos e maníacos.
Em “A grande arte”, ele desvenda o assassinato de uma mulher e leva o delegado Licurgo ao apartamento onde se encontrava o corpo. Lá, Mandrake revela seu amor pelas pequenas criaturas animais. Sua preocupação não é tanto com a vítima, mas com um peixinho que está morrendo de fome e de falta de ar num aquário em que todos os outros estão mortos. Segue-se um diálogo entre ele e o delegado:
“Posso pegar uma panela na cozinha?”, perguntei.
“Pra que diabo você quer uma panela?”
“Pra tirar os peixes mortos do aquário.”
“Não, não pode mexer em nada.”
“Espera aí, Licurgo, fui eu quem descobriu o crime.”
“E daí? Só criou problemas para mim.”
“Vê este peixe negro? Resistiu um longo tempo e talvez só aguente mais alguns minutos. Quero tirar os peixes mortos e dar um pouco de comida para ele.”
“Os peixes mortos ficam. Vou mandar examiná-los.”
“Eles não foram assassinados.”
“Você está começando a chatear.”
“Quero apenas salvar o peixinho.”
“Licurgo achou na cozinha o vidro com o rótulo Hipromin-Staple Flake Food for Tropical Fish — e ele mesmo pulverizou a superfície da água do aquário com o pó levemente granulado que estava dentro do vidro. O peixe comeu dando investidas curtas e bocadas sôfregas.”
“Uma mulher morta e nós preocupados com a merda de um peixinho. Ainda por cima peixe dá azar.” Licurgo olhou a panela cheia de peixes mortos.
“Tudo dá azar”, eu disse. “Vamos sair daqui, não aguento esse cheiro.”
No romance “Vastas emoções e pensamentos imperfeitos”, 1ª reimpressão (São Paulo: Companhia das Letras, 1988), um homem é preso num porão escuro para confessar onde escondera pedras preciosas. Ele não entra em pânico. Ao contrário, lembra da sua infância, quando brincava no porão da sua casa com ratos, aranhas, escorpiões e lacraias. “Eu passava todo o tempo que podia dentro do porão, olhando os ratos, as lacraias, as aranhas, os escorpiões. Considerava aqueles animais — sim, são animais como nós, não são insetos — os meus únicos e verdadeiros amigos.”
Ele revela conhecimento sobre esses animais. Na verdade, Rubem cria situações para exibir suas pesquisas, pois ele mostra sempre uma obsessão em seus romances, seja por facas, por óperas, por escritores etc. O prisioneiro explica que a aranha-caranguejeira é uma andarilha errante que não tece teia. Sua picada é um pouco dolorosa, mas não faz muito mal. Ele grita para uma lacraia a fim de assustá-la, pois não queria feri-la. Ele sofreria muito se a matasse.
O homem aprisionado no porão sempre brincou com escorpiões de maneira cautelosa, diferente da maneira como brincava com ratos e aranhas. “Vi muitas fêmeas parirem bebês escorpiões vivos e andarem pelo chão com as costas cheias deles (..) o escorpião é um solitário, o mais misantrópico dos animais (...) só se aproxima do seu semelhante para foder ou para lutar até a morte.” Escorpiões não se suicidam quando em situação de perigo, ele explica desfazendo o mito.
Depois de cruzarem, a fêmea mata o macho e suga suas entranhas, deixando apenas a casca, pensa ele. “...desde criança eu sabia que os escorpiões me olhavam também principalmente quando eu lhes falava no porão da minha casa: os escorpiões podem ter até doze – doze! – olhos, e quem tem tantos olhos assim tem que ser muito perspicaz.”
No porão, “De tempos em tempos eu me levantava e batia com os pés no chão; depois batia com a cadeira no chão, tudo com cuidado para não ferir qualquer dos animais.”
Uma crônica de Carlos Drummond de Andrade também revela essa curiosidade amorosa pelas pequenas criaturas. Olhando para um minúsculo inseto, ele observa que também era observado e pergunta quem examina quem.
Em “O cobrador”, 3ª edição (São Paulo: Companhia das Letras, 1989), o conto “Encontro no Amazonas” ilustra bem o que poderíamos classificar de crueldade pelo prisma do humanismo. No princípio, tem-se a impressão de que um homem de aspecto marcante atravessa o Brasil de sul a norte de forma muito camuflada e discreta, enquanto dois policiais o perseguem. Ambos param em Belém colhendo informações sobre o homem. Um deles, soube que o suspeito esteve no museu Emílio Goeldi examinando peixes. Um perseguidor se desloca para Manaus para cercá-lo, pois supõe-se que ele tenha subido o rio Amazonas embarcado. O outro fica em Belém igualmente visitando o museu. Lá, ele comenta consigo mesmo: “Fui até a jaula dos animais. Dentro de poucos anos não existiria mais nenhum, toda a fauna amazônica estava sendo dizimada. Quando me viu, a onça começou a brincar; corria e rolava de barriga para cima, como se fosse um gato. Outro animal muito bonito e elegante era a suçuarana, uma espécie de leopardo; seu pelo lilás lavado brilhava na claridade matutina. Os macacos, porém, pareciam animais tristes, infelizes e maníacos. Havia um que escondia o rosto agarrado nas barras de ferro. Suas mãos eram parecidas com as minhas. O rosto e o olhar do macaco tinham um ar de desilusão e derrota, de quem perdeu a capacidade de resistir e sonhar.”
Não sabemos de quem se trata. O autor não lhe dá nome. Talvez seja um policial sensível à natureza como o detetive Mandrake. Depois de um breve envolvimento sexual com uma jovem residente em Belém, o presumível policial vai atrás do suspeito numa embarcação que se dirige a Manaus. Em todos os lugares em que para o navio repleto de passageiros pobres, ele pergunta sobre o homem extraordinário em algum aspecto. Talvez um naturalista. O possível policial nunca larga uma pasta. Mesmo se envolvendo com uma mulher casada no navio.
Finalmente em Oriximiná, ele obtém de um menino informação sobre o suspeito. O possível policial se dirige a sua casa. Abre-se uma porta e aparece um homem com 2,30 metros de altura e cabeça branca. Cumprimentam-se. O suposto policial tira uma pistola com silenciador e mata o homem. Não era policial. Era um matador profissional frio e implacável, mas que se preocupava com a destruição da Amazônia, com a extinção da sua fauna e que se identificava com os macacos, primatas como os humanos.
O mesmo livro tem ainda dois contos em que a preocupação com a natureza aparece ao lado de taras e violência: “Pierrô da caverna” e “Almoço na serra no domingo de carnaval”.
Posteriormente, consegui adquirir a primeira edição de “Os prisioneiros”, seu livro de estreia (Rio de Janeiro: GRD, 1963), de “A coleira do cão” (Rio de Janeiro: GDR, 1965), “O homem de fevereiro ou março (Rio de Janeiro: Artenova, 1973) e “O caso Morel” (Rio de Janeiro: Artenova, 1973). Como no passado anterior a 1970, Rubem Fonseca começou modestamente publicando em pequenas editoras. Não como agora em que autores obscuros começam lançando seus livros por editoras famosas. Nomes? Não vou mencionar.