Há uma diferença essencial entre governo e estado. O estado é permanente porque é a própria nação, com seus valores, sua identidade, sua língua, sua soberania. Já o governo não, este é apenas uma força transitória, incumbido de levar adiante as questões de estado, respeitando incondicionalmente os seus poderes, a partir de um plano político de ação. Ou não.
É que muitas vezes esta relação de compromisso falha – e feio –, de maneira histriônica, como no caso atual. A governança federal desses tempos é muito mais uma lambança, de tão caricatural, de tão rasteiramente paródica, a ponto mesmo de podermos declarar que se trataria de uma sátira no melhor estilo de uma opereta bufa, ou de uma peça de Voltaire, ou de um romance de Rabelais.
O clima patético é cada dia alimentado por uma excrescência verborrágica inconsequente nova, por exemplo, quando o chefe do poder executivo troca “O Estado sou eu” por “A constituição sou eu”, “Quem manda sou eu”, num arremedo cômico da sentença de Luís XIV ("O estado sou eu"), verdadeiro déspota, monarca absoluto da França durante mais de 60 anos até morrer em 1715. Bom, pelo menos Luis XIV era monarca, autointitulado rei-sol e não um reles chefete de uma quadrilha familial que será desmascarada assim que sua concessão de poder for interrompida. O bisneto do rei-sol, Luís XVI, acabou perdendo a cabeça com os fatos e o julgamento sumário dos revolucionários de 1789; já o nosso pretenso chefe perderá apenas a sua cadeira – coisas do Brasil não-revolucionário.
Pois bem. Esses governos, não o Estado, comumente vão para as páginas da ficção como alegorias. Assim, seus autores constituem uma obra satírica e paródica que passa despercebida pelos mecanismos de controle e da censura dos chefes de estado. Não à toa, Émile Zola declarou: “Os governos suspeitam da literatura porque é uma força que lhes escapa”. Isso é ainda mais verdadeiro nos dias que correm.
A literatura está repleta de romances e poemas alegorizando o poder, principalmente de chefetes. Tomás Antônio Gonzaga, mais conhecido pelos versos líricos de “Marília de Dirceu”, é também o autor de “Cartas chilenas”, poema em versos decassílabos sem rima, proposto como epistolar. Nelas, Critilo, conta ao seu amigo Doroteu os desmandos, excessos de poder e vaidades de Fanfarrão Minésio, que governa o Chile. A alegoria, contudo, se constrói quando se cabe que Gonzaga era ouvidor de Vila Rica e desafeto do então governador das Minas Gerais, Luís da Cunha Meneses, entre 1778 e 1783. Fanfarrão, o nome já proclama, alegoricamente cai como uma carapuça em Meneses. Também a ressonância fonética entre Minésio e Meneses ajuda muito.
Não faltam nas cartas descrições ridículas de fanfarrão Minésio, tal como compará-lo a Sancho Pança: Feições compridas e olhadura feia,/ grossas sobrancelhas, testa curta,/ Sem ser velho, já tem cabelo ruço/ E cobre este defeito e fria calva/ Ainda me parece que o estou vendo/ No gordo rocinante escarranchado/ As longas calças pelo umbigo atadas”.
Mais uma carta chilena, e Critilo, desta vez, compara Minésio-Meneses a ninguém menos que Nero, o imperador que tacou fogo em Roma: “As rédeas manejou, do seu governo,/ Fingir-nos intentou que tinha uma alma/ Amante da virtude. Assim foi Nero./ Governou aos romanos pelas regras/ Da formosa justiça, porém logo/ Trocou o cetro de ouro em mão de ferro”. E assim sucede nas demais cartas, num total de treze.
Os tempos de hoje e de ontem são diferentes no quesito “escracho público”. Não se poupam mais sutilezas. Bolsonaro é o Bozo, por exemplo, mas também cavaleiro das trevas vestido de manto preto com uma foice nas mãos esqueléticas, ou com a fisionomia arruinada de chagas viróticas. O jornalista Élio Gáspari, do Globo, criou certa vez um personagem que encarnava o personagem paspalhão da semana, fosse qual fosse, e a ele deu-lhe um nome e um epíteto: Eremildo, o Idiota. Cabe muito bem, diariamente, ao nosso chefete.
Voltando às “Cartas”, estas prosseguem durante toda a década da Inconfidência anonimamente, pois que Tomás era um sátiro, mas não um louco, embora seu destino não seja dos mais auspiciosos, pois termina seus dias degredado em Moçambique, por outras razões, pois a autoria das “Cartas” foi determinada mais de um século depois. Naquela época, como hoje, os julgamentos eram sumários. Tiradentes que o diga. Só que hoje, não se perde a cabeça nem se vai pra cadeia, pelo menos os grandes, de forma que o parco anonimato das redes permite toda a sorte de insultos públicos.
Essa tradição satírica perdeu sua força na literatura brasileira, mas migrou contemporaneamente para os domínios públicos das redes, sem subterfúgios estéticos, sem grandes construções artísticas. Ficaram no seu lugar as charges ou os memes, produzidos em escala industrial tão logo um descalabro presidencial ou ministerial venha à superfície, sem decoro.
Tristes dias em que muito se fala, muito se critica abertamente, mas nada acontece. E o barco segue desgovernado, rumo aos precipícios abissais de uma Terra plana.