* Arthur Soffiati
09/04/2020 12:30 - Atualizado em 04/05/2020 20:02
Até cerca de 10 mil anos antes do presente, a humanidade já havia conquistado todos os continentes, vivendo em pequenos grupos sociais que se sustentavam com vegetais e pequenos animais coletados, com a pesca e com a caça. Essas sociedades não haviam ainda domesticado vegetais e animais. Portanto, era necessário um constante deslocamento para conseguir alimentos. Os historiadores classificaram essas sociedades de paleolíticas, palavra que significa “pedra antiga”. Seus integrantes lascavam a pedra ou usavam lascas já encontradas na natureza para usar no corte de alimentos, na fabricação de instrumentos e na guerra. Não é uma designação adequada porque essas sociedades também usavam o osso, a madeira e outros materiais para fabricar seus utensílios. Porém, como a pedra perdurou por ser mais resistente, o nome “paleolítico”-- se consagrou. Em face de seu grande nomadismo e de seu modo simples de vida, essas sociedades acumulavam poucos resíduos, geralmente degradáveis, e não corriam tanto risco de sofrer epidemias, embora a vida fosse muito perigosa.
O aquecimento climático natural a partir de 11.700 anos passados derreteu grandes geleiras, elevou o nível dos oceanos e lançou um desafio aos grupos humanos. A maioria deles continuou com o modo de vida nômade. A minoria respondeu ao desafio com a domesticação de plantas e animais. Nasceram, assim, a agricultura, o pastoreio e a sedentarização. Originou-se o neolítico, com o polimento da pedra, a cestaria, a cerâmica, a tecelagem, a metalurgia, a roda etc. A concentração de pessoas e a produção de alimentos atraíram animais transmissores de doenças, como insetos e ratos, por exemplo. A domesticação de animais aumentou o contato deles com humanos, facilitando os contágios. Os historiadores entendem que as epidemias surgiram com a sedentarização.
O passo seguinte foi a especialização. Aos poucos, nas sociedades neolíticas, a maioria das pessoas dedicou-se às atividades rurais, que garantiam o alimento, enquanto uma minoria cuidava do governo, da religião, da defesa e do comércio. Nasceram, assim, as primeiras civilizações, com a divisão territorial do trabalho: campo e cidade. No campo, estavam os agricultores e pastores. Nas cidades, estavam os governantes, sacerdotes, militares e comerciantes. Todas as civilizações, e foram mais de 20, conheceram epidemias resultantes da sedentarização, da concentração de pessoas e do contato íntimo com animais.
Que se saiba, ainda não existe um estudo geral das epidemias em todas as civilizações. Nem mesmo na civilização helênica (Grécia e Roma), da qual o mundo ocidental é herdeiro direto, esse conhecimento é detalhado. Ele deriva mais de relatos de época que chegaram até nós do que por documentos arqueológicos. Os estudos das grandes epidemias costumam restringir-se ao mundo helênico e ocidental e ocidentalizado. Normalmente, esses raros estudos se concentram nas maiores epidemias conhecidas, como a “peste de Atenas” (428 a.C.), a “peste de Siracusa” (396 a.C.), a “peste Antonina” (século II d.C.), a “peste do século III d.C.”, a “peste Justiniana” (542 d.C.) e a famosa “Peste Negra”, na Europa ocidental, no século XIV da era cristã.
Quem sobreviveu às doenças contagiosas na Europa Ocidental adquiriu anticorpos, mas europeus do século XV, também imunizados naturalmente, transportaram micróbios para a América no final do século, com as grandes navegações. Transportaram tambémos vetores das doenças, como mosquitos, moscas, ratos etc. No continente americano, encontraram povos que desconheciam as doenças europeias. É o que o historiador Alfred Crosby denominou epidemias em solo virgem. Essas epidemias mataram muitos indígenas e ajudaram nas guerras de conquista.
Uma epidemia causa sempre uma ruptura no cotidiano de uma sociedade. A norma dá lugar à anomalia, como estamos verificando agora com a pandemia causada pela Covid-19. Esse estado de exceção constitui o que Victor Turner conceituou como drama social e que foi invocado pelo antropólogo Carlos Valpassos, da UFF/Campos, em artigo publicado na Folha. O drama marca a sociedade e se transforma em tema a ser abordado por escritores e artistas. Como as epidemias na literatura estão sendo abordadas com bastante competência pelo professor Sérgio Arruda, também aqui mesmo na Folha, proponho-me a verificar brevemente como elas foram vistas pelos desenhistas e pintores.
Não se conhece registro iconográfico da “Peste de Atenas” na época em que ocorreu. Ela foi recriada imaginariamente por Michiel Sweerts, pintor e gravador flamengo do período barroco, que se destacou com seus retratos, como foi comum entre os pintores flamengos. Ele nasceu em Bruxelas, em 1618, e morreu em Goa, domínio português na Índia. Sua vida foi itinerante, trabalhando em Roma, Amsterdã, na Pérsia e Índia. Dele é um quadro sobre os danos da peste em Atenas.
O mesmo aconteceu com a “peste Antonina”. Só se têm notícias dela por registros escritos. SomenteJules-ÉlieDelaunay, que nasceu em 1828, interessado em temas greco-romanos, retratou-a no quadro “Praga em Roma”, exposto em 1869.
A Peste Negra proveio do centro da Ásia, provavelmente trazida pelos mongóis, que, na época, ligavam oriente e ocidente tanto quanto os muçulmanos. Tratou-se de uma epidemia de peste bubônica transmitida por pulgas que picavam ratos e humanos. Os micróbios não eram conhecidos. Acreditava-se que a doença era causada por miasmas e pela respiração. Daí, os curandeiros usarem máscaras. Estima-se que a epidemia tenha matado entre 75 e 200 milhões de pessoas. Tanto em sua época como posteriormente, ela mereceu registros iconográficos, tal a sua devastação. Tais registros, na época da epidemia, geralmente não contam com a assinatura do autor. No século XIV, ainda não era comum o artista que imprimia sua marca individual. Por mais que a obra fosse criada por um artista, ela expressava mais a cultura reinante que a visão pessoal.