Esta semana nos despedimos de uma das mais eminentes figuras da nossa ficção. Rubem Fonseca, autor de uma profícua obra, entra na imortalidade com uma vasta contribuição à prosa literária brasileira. Lembro-me sempre dele pelo impacto da leitura de contos seus do início de sua carreira, nos anos 1960-70. "Lúcia McCartney" e "Feliz Ano Novo", por exemplo, funcionam como um soco e vêm nos ensinar que o impacto da beleza também está no submundo das criaturas urbanas desprezadas, até então, do foco político da literatura que se fazia à época.
Lembro-me dele também por ter trabalhado sua ficção romanesca, especialmente "Vastas emoções e pensamentos imperfeitos" (1988). Trata-se da história de um cineasta procurando recursos para a produção de um filme baseado no clássico "A cavalaria vermelha", do escritor russo Isaac Babel. No percurso, numa trama detetivesca, ele mistura espionagem na Berlim oriental, assassinato, roubo suicídio, pastores evangélicos, e de quebra faz numa clara alusão a um filme cult clássico, "Relíquia macabra" (1941), de John Huston. O percurso ainda inclui busca de manuscritos desaparecidos na ex-URSS, mas, essencialmente, põe foco na reflexão sobre os recursos que cada meio — romance e cinema — oferece e dispõe para contar uma história.
Isso tudo eu achei mais que fascinante e encaminhei minha pesquisa doutoral com o romance intertextual ou em espelho, e mais outros quatro, de outros autores, que conduzem semelhante discussão.
Um dos mais profícuos romancistas e contistas de nossa literatura, Rubem Fonseca, encerrando a vida aos 94 anos, é autor de toda uma biblioteca de valor inestimável para a nossa ficção. É importante marcar a distinção não opositiva entre escrever e ter-se tornado, de fato, autor — desses que influenciam outros, marcam um período, um estilo e uma estética. Avesso a entrevistas, com todas as suas memórias guardadas para si, ele agora parte sem velório concorrido, talvez do jeito que ele queria. Acho que este é mais um dos seus contos.
Autor de uma dezena de romances e uma vintena de livros de contos, Rubem Fonseca me encantou ultimamente com o livro de memórias intitulado "José", de nove anos atrás. Neste, ele conta suas trajetórias de jovem e menino, de Minas ao Rio nos anos 1930-40, buscando com isso elevar as memórias a um plano ainda mais superior do que o da literatura, como “a nossa melhor educação”.
Nesse mergulho nas suas memórias, autor e leitor podem depreender o que é necessário para que um escritor se torne escritor. A primeira coisa necessária, embora não suficiente, é ser leitor, ou seja, apreciador do mundo das letras. Essa determinação parece bastante razoável e está presente nas memórias de Rubem Fonseca, ou José, que confessa ter sido um leitor compulsivo. Dos primeiros oito anos de sua infância em Minas, ele diz ter vivido em Paris tal a sua devoção bem precoce pelo romance francês, ambientado na cidade luz.
A segunda coisa necessária parece ter sido querer escrever, e ele o fez já na mais tenra idade. Os originais, que ele deixou com um editor na rua das Marrecas, no Rio de Janeiro, foram perdidos na própria casa editora e jamais encontrados. O velho editor, envolvido com a publicação apenas de escritores nacionais, havia lido os originais, mas não havia aprovado uns palavrões usados pelo jovem Rubem...
Quem já leu Rubem Fonseca, sabe que uma literatura no belo estilo refinado do escritor clássico não é uma das suas marcas. Na sua ficção brutalista, no dizer de Alfredo Bosi, o narrador costuma tomar a narrativa para si e a desenvolver com a sua própria linguagem. Ainda me arrepio com a lembrança da leitura do conto “Feliz ano Novo”, de 1975, no qual três assaltantes — o próprio narrador, Pereba e Zequinha — desenvolvem um assalto brutal em uma festa chic, com execuções e estupros. No final, eles celebram o ano novo, incólumes.
Nas memórias de José, a saída de Minas acompanhando a família arruinada financeiramente e a instalação em um depauperado sobrado do Centro do Rio, a descoberta da cidade desde o inicio dos anos 1930 com olhos de menino, as primeiras ocupações profissionais, a descoberta do sexo, constituem ricos eventos que beneficiariam o futuro escritor.
Na página 163, lemos: “José estava certo de que na realidade a motivação de cada escritor está essencialmente ligada à sua vida, sua experiência, desejos, ambições, sonhos, pesadelos”. Nada mais verdadeiro e autêntico para um escritor e autor.
Esta receita de escritor não deve ser universal, mas é a que Rubem Fonseca nos apresenta como tendo sido a sua. As memórias que ora temos cobrem apenas os seus primeiros 20 e poucos anos, não prosseguem muito além, seguindo um pouco, como ele mesmo disse, o exemplo do escritor Isaac Bashevis Singer, que compôs sua autobiografia até os 30 anos. Ainda com Singer, ele escreve, fechando as suas memórias: “a história verdadeira da vida de uma pessoa jamais poderá ser escrita”.