Cinema: Apologia da diferença
*Edgar Vianna de Andrade 27/04/2020 16:43 - Atualizado em 08/05/2020 21:39
"Tarântula" / Divulgação
À pergunta de um astrônomo sobre como trataria o diferente, o xerife da cidadezinha esmagou com a bota uma aranha do deserto onde ambos conversavam. Trata-se de uma cena de “A ameaça que veio do espaço”, filme dirigido por Jack Arnold em 1953. É o terceiro filme dirigido por ele. Nascido em Los Angeles em 1916, no meio da indústria cinematográfica, Arnold se tornou um gênio do cinema B. É possível ser talentoso no cinema A, B e “trash”.
A base do roteiro não é ninguém menos que Ray Bradbury, fonte de inspiração para muitos cineastas, principalmente para François Truffaut, que filmou “Fahrenheit 451”. Arnold ia direto ao assunto. Numa casa em pleno deserto, um casal de namorados vê um fogo cruzando os céus e se chocando com a Terra. Tudo leva a crer que se trata de um meteoro. Mas o astrônomo entra na cratera enquanto sua namorada o aguarda. No fundo, tem a impressão de ver um ser.
Logo chegam o xerife e a imprensa. O astrônomo passa a ser ridicularizado por afirmar que o meteoro é uma nave espacial. Aos poucos, seus passageiros se apossam dos corpos de moradores da cidadezinha para fazerem reparos na nave espacial avariada. Até mesmo a namorada do astrônomo tem seu corpo imitado pelos ETs.
Por fim, um encontro entre os espaçonautas e o cientista esclarece que houve um problema na nave e que seus tripulantes não queriam se mostrar aos terráqueos por saber que não estavam preparados para lidar com o diferente. De fato, os moradores da cidade se reúnem e invadem a mina em que a nave estava escondida. Tarde demais. Mesmo usando dinamite, os terráqueos veem a nave partir e os humanos aprisionados serem soltos.
Em 1954, Arnold dirige “O monstro da Lagoa Negra”, filme que se tornou um clássico e chegou mesmo a ser elogiado por Ingmar Bergman. O diferente agora é um ser anfíbio antropoide remanescente de eras geológicas passadas que sobreviveu não se sabe como. Ou era hermafrodita ou a fêmea não foi encontrada. Arnold não escapa dos clichês do cinema estadunidense. Os cientistas são sempre norte-americanos e os trabalhadores são locais. Dois polos são logo definidos: um membro da expedição formada para encontrar o ‘monstro’ é bruto e caçador. O outro é um cientista que compreende o diferente. Entre ambos, a bela mocinha cientista já com pendores feministas, mas ainda dependente de homens e que facilmente grita quando se assusta.
O ser anfíbio sente-se atraído pela moça. Depois de muitas peripécias, o cientista mau morre nas garras do ‘monstro’ e os que sobraram da expedição deixam-no em paz. Em 1955, Arnold aproveitou o sucesso do filme e dirigiu “A revanche do monstro”, já seguindo o modelo das franquias. Nessa onda, John Sherwood produziu “A criatura caminha entre nós” (“The creature walks among us”), de 1956, formando uma trilogia. A aura do anfíbio não estava encerrada. Guillermo del Toro deu continuidade ao seu drama com “A forma da água”, de 2018, arrebatando quatro Oscars no ano seguinte.
Em 1955, Arnold volta com aquela aranha esmagada no deserto. Ele dirige “Tarântula”. Novamente numa cidade do interior, um cientista preocupado com o crescimento populacional da Terra trabalha na produção de super animais para fornecer alimentos. Estamos, mais uma vez na história do cinema, diante de um homem bom que acarreta o mal. Um amigo dele morre com deformações. O médico da cidade não se convence de que a morte se deu por acromegalia, doença gerada por disfunção glandular que aumenta as extremidades do corpo e o deforma. Chega à cidade uma bela moça que vai trabalhar como estagiária do cientista. Ninguém sabia que uma aranha cobaia havia sido inoculada com o soro do crescimento e que fugira para o deserto. Mais uma vez, o ambiente inóspito. Mais uma vez, o romance, agora entre a bela cientista e o médico.
A aranha ganha proporções gigantescas e começa a atacar o gado e as pessoas. Ela é a diferente nesse filme. Mas agora não há piedade. Ela é uma grande ameaça para a cidade. É preciso matá-la e, para tanto, a aeronáutica entra em cena com napalm. Em filmes em que a natureza ou o desconhecido ameaçam a humanidade, o perigo quase sempre fica restrito a uma pequena cidade.
Em 1957, Arnold se consagrou na ficção científica com “O incrível homem que encolheu”. Não há mais nenhuma ameaça verdadeira ou suposta à humanidade. Mas há uma denúncia. Provavelmente, a radioatividade representaria uma ameaça. Doze anos antes, duas bombas atômicas tinham sido lançadas sobre o Japão pelos Estados Unidos, e a corrida militar da guerra fria acumulava artefatos nucleares. Por que uma nuvem radioativa misteriosa não podia atingir uma pessoa e provocar o seu encolhimento?
Foi o que aconteceu com um homem de 1,85 metros. Por mais que a medicina tenha sido acionada, ele começou a encolher e se tornar o diferente da história escrita por Richard Matheson, autor de “Eu sou a lenda”. Sua esposa e seu irmão acreditaram que ele foi devorado pelo gato da casa. Mas ele caiu no porão e vive entre novelos, agulhas, pregos, ratoeiras e uma aranha. Ela agora não cresceu como em “Tarântula”. Foi o homem que diminuiu. Ele terá de lutar com ela e se conformar com a sorte de sumir. Será um átomo ou uma partícula subatômica, tão pequena como grandes são os astros.
Arnold ainda dirigiu faroestes e a comédia “O rato que ruge”, com o iniciante Peter Sellers. Mas seu período áureo foi a década de 1950, e seus filmes mais importantes foram os comentados aqui.
"O incrível homem que encolheu" / Divulgação

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