Um joelho ralado...
Beth Landim 20/04/2020 15:16 - Atualizado em 08/05/2020 21:35
Joelhos ralados
Joelhos ralados / Reprodução
Minha memória afetiva me faz lembrar que a primeira vez que eu caí de bicicleta, foi numa rua sem saída em Grussaí. Andávamos sempre em grupo de amigos, eu devia ter uns 10 anos e, por incrível que pareça, começávamos a andar de bicicleta por volta das 14h... Em plena luz do sol, ou melhor dizendo, daquela “lua” toda...
Nossa rotina na minha praia que amo, Grussaí, começava cedo. Íamos para a Colônia de Férias no Clube de Grussaí (meus pais coordenavam a Colônia e também ministravam aulas juntos a minha querida tia do coração Ivethe Abreu Moreira, o saudoso amigo Amilton Ribeiro e Sansão, professor de judô). Depois, passávamos em casa, lanchávamos e íamos de jipe, geralmente revezando a direção, meu pai Amaro ou minha mãe Elza. Me lembro até da placa do Jipe, 2317 (que na verdade é parte do número do telefone fixo dos meus pais até hoje). Lá, à beira-mar, nos esbaldávamos... conhecíamos todas as famílias das barracas de praia que ficavam lado a lado, brincávamos de bola, nadávamos muito, e quase sempre, ouvia os gritos da areia: “Volta, volta!!! Você está indo longe demais...” Sempre gostei de furar ondas e nadar, nadar, nadar... até não dar mais pé... É assim que falávamos.
Sentir o cheiro da praia, da maresia, a sensação de vencer as ondas, aquela imensidão à minha frente... Chupávamos também muito picolé “São João da Barra”, mas muitos mesmo; ainda pendurávamos a conta, pois logo após o almoço, quando o vendedor passava em nossas casas para receber, chupávamos outras tantas rodadas de picolé, acrescidos da compra de puxa-puxa e de coquinho caramelizado... Neste tempo, comíamos e brincávamos tanto, que a magreza imperava, e a quantidade das guloseimas não alterava o “produto final”. Era pura alegria... Um mundo simples, descomplicado, maravilhoso...
Quando entrávamos no jipe de volta, estávamos sempre cheios de areia também, mas muito felizes, de alma literalmente lavada. E então, voltando à bicicleta, almoçávamos e partíamos para a bicicleta... E, numa dessas, perdi o equilíbrio e caí feio!!! A rua era de recife, com muitas pedrinhas que, com a queda, entraram na minha pele, e a lateral do meu joelho ficou vermelha de sangue (todo ralado), cheio de pedrinhas de recife agarradas...
Na hora me assustei, ardia muito e sentia dor. Montei novamente na bicicleta e fui chorando para casa. Quando cheguei, minha mãe limpou tudo com água, água oxigenada (com dificuldade, é claro, pois quando ela começava a limpar eu tirava a perna e chorava... ficou muito feio), e, depois de tudo limpo, era a hora do “Merthiolate”... Já sofríamos antes de colocar. Mas, colocado o Merthiolate, passadas algumas horas, lá estava eu de novo na bicicleta... Bem mais devagar naquele momento, mas “bicicletando” e sentindo o vento no rosto.
Assim é a vida... Quando nos permitimos aceitar a nossa vulnerabilidade, nos tornamos “maiores”. E essa vulnerabilidade, quando sincera, é uma troca. Tenho certeza que o colo, o abraço e o acolhimento da minha mãe, ao tratar o meu machucado, me curaram muito mais do que o próprio remédio. Tenho a marca desta queda até hoje na minha perna, mas nunca a tive em minha memória emocional!!!
Quando começávamos a andar de bicicleta, as ruas eram desertas, cheias de pés de pitanga e moitas de cactos. Também fazia parte das nossas brincadeiras colhermos pitangas, sentindo aquele cheiro silvestre. O sol ardendo em nossa pele, a adrenalina da bicicleta e as gargalhadas soltas com os amigos faziam qualquer machucado sarar.
A nossa postura, diante dos “joelhos ralados” da vida, é que vai ditar os nossos caminhos adiante. Sentir medo, insegurança, vulnerabilidade é tão normal quanto pedir ajuda. “Olhar através” é olhar através do olhar do outro que nos é referência, que é âncora em nossa vida. E muitas vezes, quando as pessoas se perdem, “ralam joelhos” e nunca saram daquela ferida, é porque elas estão sem referência... Será que existe remédio imediato para “joelho ralado”? Para nossas dores? Eu, por exemplo, não consigo sentir raiva! De maneira nenhuma sinto raiva, ainda mais de quem amo! Mas fico triste! Triste! Triste! Porque muitas vezes não temos o remédio para todas as dores e soluções. Não para aquele momento. Mas, temos o colo, o abraço, a admiração, o carinho, o beijo gostoso.
“Nosso cérebro não faz distinção entre um osso quebrado e uma tristeza amorosa”, chamamos isso de “dor social”. Neste momento, estamos a sofrer desta dor. Como tão bem diz Mário Sérgio Cortella: “aquele que tiver a real solução para esse problema que atire a primeira pedra”. Talvez desacelerar seja também um remédio. Mas requer coragem, um sopro de mudança de desconstrução, e, então, achamos que temos o “remédio” para tudo. Como estamos sem remédio e perdidos, começamos a atirar pedras. Por isso, temos que ter sabedoria para não deixar as marcas dos “joelhos ralados” e das feridas da alma e do coração tomarem espaço dentro de nós.
Saber relativizar as dores é também ser sábio. Mas, todas essas cicatrizes dos “joelhos ralados, da alma e do coração” enriquecem a nossa história de vida, constroem a nossa identidade e nos fazem sermos “remédio” na vida de quem amamos, ora recebendo doses de amor, ora ofertando doses de amor. Estamos todos ralados, machucados, sofridos, limitados sem nem saber onde ralou. Mas, temos o melhor remédio do mundo: nos amamos e, acima de tudo, nos deixamos ser amados, nos permitindo sentir o perfume do amor, seja qual dose for possível. O amor genuíno, mesmo à distância, sempre será o nosso amor mais intenso e forte, pois é verdadeiro.
Façamos, então, das nossas cicatrizes, um sinal de vitória de cada desafio. Quando estou triste, sempre remeto meus pensamentos para meus melhores momentos vividos. Tenho-os VIVOS em mim. Ou melhor, vivo com eles acionados em meus pensamentos como um mantra, em então, eles me fazem ter a real relativização de que vale a pena enfrentar e sonhar, para concretizar os nossos desejos. Tudo que precisamos é de um colo, paciência, persistência no amor, acreditar que é possível, que pode demorar, mas que a ferida irá sarar e que estaremos juntos!
Vou confessar para vocês, este tombo de bicicleta foi o primeiro, mas não foi o único. Já caí mais umas três vezes. Uma vez na Rua Formosa, à noite, pedalando... Atropelei um carro parado (terrível né?), mas já falei aqui como sou desligadíssima nos meus momentos de lazer. Machuquei o pé, chorei e ri, consegui quebrar o retrovisor do carro, restitui ao dono do carro e segui colecionando quedas... rs rs. Em outra vez, não vi a ciclovia da Avenida 28 de Março acabar (mais um desligamento). Vivo com a cabeça nas nuvens e caí em plena Av. 28 de março. Por sorte já eram 23h e consegui me levantar rápido, sem ser atropelada. Outra vez, foi indo para Atafona... Me estabaquei e caí no banco de areia, aqueles cheios de picos agrestes.
Então, para terminar esta “saga do joelho ralado”, quero dizer pra você: ainda vamos nos machucar, “ralar nossos joelhos”, sentir dor de alma e de coração. Estamos todos ralados. Mas, vai passar. Deixe quem você ama “soprar” o ralado, te dar um colo, conversar com você ao telefone neste tempo de isolamento, te dar um abraço e um beijo, porque vai passar. E então, mesmo que demore, estaremos juntos. Um joelho ralado sempre passa, mas o amor permanece, mesmo à distância. Um abraço carinhoso para cada um de vocês...

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