Maria Cobrinha deixou um legado jongueiro
28/03/2020 14:33 - Atualizado em 04/05/2020 20:49
Protagonista da cultura negra em Campos e região, Nicolina Gomes Guedes morreu na quinta-feira (26), aos 72 anos
Protagonista da cultura negra em Campos e região, Nicolina Gomes Guedes morreu na quinta-feira (26), aos 72 anos / Wellington Cordeiro
Campos perdeu na quinta-feira (26), aos 72 anos, uma das suas mais antigas mestras jongueiras, Nicolina Gomes Guedes, sepultada no cemitério do Caju. Maria Cobrinha, como era conhecida, vinha sofrendo complicações pela diabetes. Ela foi personagem ilustre da Rede Jongueira do Vale do Paraíba, com atuação destacada na resistência da cultura negra na planície goitacá e região. Deixou três filhos e aproximadamente 10 netos.
Dos sete aos 31 anos, Maria Cobrinha trabalhou como bóia-fria. Oriunda da região de Outeiro, hoje pertencente a Cardoso Moreira, chegou a Campos com 16, residindo durante longo período no Parque Aldeia. Posteriormente, foi para o Parque Santa Rosa, onde passou a frequentar o terreiro da mais famosa jongueira campista, Maria Anita, nas décadas de 1970 e 1980. Por muito tempo, escondeu que praticava a dança de origem africana por já ter sofrido preconceito “de pessoas que acham que isso é macumba”, como contou em 2008 ao extinto jornal Monitor Campista. Teve seu talento redescoberto e valorizado pelo artista plástico Rafael Sánchez e sua esposa, a atriz Lúcia Talabi, outra praticante do jongo, aprendiz de Maria Cobrinha. E foi reconhecida como jongueira pelo produtor José Sisneiro, na montagem do espetáculo “O Auto do Ururau”, que estreou em 2004, teve uma temporada no Rio e recebeu no ano seguinte o Prêmio Shell de Teatro na categoria música.
Em 2004, Lúcia Talabi, Rafael Sánchez e Maria Cobrinha criaram o projeto sócio-cultural Fala Couro, com a intenção de revitalizar o jongo em Campos. A proposta era de organizar rodas de jongo em datas comemorativas tradicionais, realizar oficinas e trocar experiências culturais associadas à tradição jongueira. Segundo Lúcia, foi uma iniciativa criada “com Maria e para Maria”.
— Almejamos que assim ela poderia viver com dignidade e do seu precioso conhecimento e ofício: ser jongueira. Mulher negra ágrafa, oriunda da cultura da cana, do trabalho dos canaviais de onde o jongo nascia. Quem mais sabia desta arte? Maria e seus companheiros do corte e do tambor. Isto é profissão. Mas, numa cidade como Campos, que não cuida e ignora as matrizes negras de sua formação cultural, por racismo, pessoas importantes como Maria não conseguem a inclusão social e são abandonadas. Vergonhosamente, não podem contar com políticas públicas que verdadeiramente as defendam — lamentou Lúcia Talabi.
Rafael Sánchez usou discurso poético para homenagear a “mestra, madrinha e amiga”:
— Navegamos pelas nossas veias abertas, tantíssimas historias, qual se fossem pedrinhas construindo os caminhos da inevitável Pátria Grande. O que nos uniu foi essa incessante troca de histórias. Umas contadas e outras vividas na parceria quotidiana: as trancinhas de meus filhos, Jasmin e Rudá, os temperos daquele feijão gostoso; a confecção dos tambores; os pontos para cantar; os passos e a ginga para dançar. Semeando jongo, do quilombo de Barrinhas em São Francisco de Itabapoana a Machadinha de Quissamã.
Em vida, Maria Cobrinha foi homenageada pelo artista Rudá Sánchez com a cantiga “Saudação a Mariazinha”. “Eu vim aqui, vim aqui neste terreiro, pra saudar Mariazinha, que me ensinou a ser jongueiro”, diz o canto.
O produtor cultural e fotógrafo Wellington Cordeiro, atual presidente da Associação de Imprensa Campista (AIC), considerou a morte de Maria Cobrinha “um duro golpe na tão fragilizada relação com a nossa realidade africana” e a segunda grande perda cultural de Campos na semana, fazendo alusão à partida do professor, artista e programador visual Sérgio Provisano na madrugada de terça (24), aos 64 anos.
— Dona Maria era uma de nossas últimas referências desta manifestação afro-brasileira, em pleno processo de esquecimento em nossa região. Perde a cultura jongueira, perde o movimento afro, perdemos todos nós — enfatizou.
Em comentário no Facebook, o jornalista, professor e diretor teatral Orávio de Campos Soares seguiu esta linha. “Com o passamento, esmaece parte considerável da cultura africana oriunda das senzalas. Que Oxalá a receba em sua glória”, escreveu.
Na mesma rede social, foi publicada nota coletiva da Escola de Arte e Cultura Popular Mãos Negras, do Movimento Negro Unificado, Fórum Municipal de Religiões Afro-Brasileiras (Frab) e Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial (CMPIR), divulgada por Gilberto Firmino Júnior, o Totinho Capoeira, presidente das duas últimas entidades.
— Somos gratos pela confiança, o comprometimento e afinco com que lutou junto aos demais pelos direitos e a revitalização das manifestações de resistência cultural do povo negro, sendo uma grande representantes do jongo campista. Que as lembranças de quem se foi possam confortar seus corações, e que a nossa grande mestra jongueira descanse em paz — diz um trecho da nota.

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