Arthur Soffiati
26/03/2020 11:44 - Atualizado em 04/05/2020 20:13
Há uma diferença entre modernidade e modernismo. A modernidade começa na segunda fase da civilização ocidental, considerando-se que a Idade Média não é uma fase intermediária entre o que se denomina, erroneamente a meu ver, de Antiguidade. Assim, a Idade Média deve ser vista como a idade primeira da civilização ocidental. A segunda fase começa no século XV. Em termos culturais, é a fase do Renascimento, em que a modernidade começa a se definir. Situemos Descartes, no século XVII, como o primeiro grande moderno. O projeto dele foi separar natureza de humanidade, corpo de mente, religião de filosofia. Ao mesmo tempo, ele transporta para seu pensamento laico a concepção judaica de mundo: a história da humanidade é linear, ascendente, expansionista e finalista. Trata-se de uma visão teleológica em direção ao progresso.
Se, na civilização helênica, a história não tem direção, no mundo ocidental, o cristianismo preconiza uma visão de progresso, comandada por uma entidade exterior. No caso, Deus. Mas, se Deus não é negado por Descartes, Ele é afastado para longe, deixando que os humanos vivam a sua própria história. Essa marcha em direção ao progresso é inevitável, queiram ou não queriam os homens, pois uma força externa ou interna comanda o processo. Os iluministas, Hegel, Marx e, em certa medida, até mesmo Darwin são animados por essa concepção laica do judaísmo sem se darem conta dela.
Já os modernismos são movimentos de atualização da modernidade. Na Europa e na América Latina, estamos acostumados a tratar o modernismo como um movimento particular cujo início se situaria em 1870 e alcançaria seu apogeu na década de 1920. No Brasil, particularmente, é muito comum confundir modernismo com a Semana de Arte Moderna de 1922, promovida em São Paulo. Ela só foi uma manifestação do modernismo. No Rio de Janeiro, não houve um movimento pontual e específico que marcasse o modernismo, bem como em Belo Horizonte. Apenas revistas modernistas assinalaram a intenção de modernizar a modernidade.
Em 2019, o jornalista Ruy Castro publicou o livro “Metrópole à beira-mar: o Rio moderno dos anos 20” (São Paulo: Companhia das Letras). Sua intenção é demonstrar que o modernismo no Rio de Janeiro se confundiu com a modernidade e se processou de forma difusa, sem um movimento marcante, como a Semana de Arte Moderna. Ele mostra que São Paulo ainda era uma cidade provinciana, extensão urbana de uma economia rural cafeeira, enquanto que o Rio de Janeiro era a capital da República, uma cidade cosmopolita que recebia jovens artistas do interior desejando desenvolvimento e reconhecimento, assim como personalidades relacionadas à cultura em todas as suas dimensões, vindas do exterior com a intenção de visitar a cidade ou o país ou de se fixar permanentemente nela.
O livro começa com a gripe espanhola, em 1918, e termina com a revolução ou golpe de Getúlio Vargas, em 1930. A obra tem duas qualidades indiscutíveis: escrita fluente e cativante, e muita pesquisa. Ruy discorre com detalhes sobre jornais, revistas, personalidades políticas, poetas, romancistas, músicos, cinemas. Enfim, sobre o cotidiano do Rio de Janeiro na década de 1920.
Mas escrita fluente e pesquisa exaustiva apenas não bastam. É preciso saber avaliar e sopesar. Com relação à Semana de Arte Moderna, de São Paulo, Ruy simplifica a realidade. Insinua, embora não afirme categoricamente, que o papel de Di Cavalcanti, um carioca morando em São Paulo, foi fundamental. Anita Malfatti teria se encorajado a expor seus quadros por Di, recebendo uma crítica conservadora feroz do paulista Monteiro Lobato. A exposição não teria sido devidamente reconhecida pelos jovens intelectuais que promoveriam a Semana. Fica também a insinuação de que Di Cavalcanti foi a grande personalidade do evento modernista, que expressaria o interesse dos barões do café de forma explícita. Entendo essa interpretação como simplificação da realidade.
Ele enfatiza também a reverência que os jovens intelectuais paulistas tinham por Graça Aranha, um escritor oportunista que se valeu da Semana para ressuscitar ou ganhar sobrevida. Ele menciona também a caravana dos jovens paulistas ao Rio de Janeiro para prestigiar um discurso de Graça Aranha na Academia Brasileira de Letras desancando a instituição, que teve resposta com manifestação contrária liderada por Coelho Netto. Graça Aranha sempre foi considerado um intruso pelos os jovens modernistas de São Paulo. Pelo prestígio conquistado como escritor, os jovens não sabiam o que fazer com ele. O certo é que Graça não era bem quisto pelos modernistas. Que sejam lidas as cartas trocadas entre Carlos Drummond de Andrade e Ribeiro Couto. Nos bastidores Ribeiro Couto aniquilava com Graça e considerava Mário de Andrade o espírito animador da Semana. Por sua vez, Mário não se entendia bem com Ribeiro Couto pelo caminho seguido dentro do modernismo.
Mostrar que a modernidade e um certo modernismo animavam o Rio de Janeiro é o grande mérito do livro de Ruy Castro. Comparar o Rio com São Paulo de forma competitiva é algo que não se sustenta. Afinal, o modernismo paulista contou com escritores e artistas cariocas. A participação deles foi buscada pelos jovens paulistas. A Semana de Arte Moderna não foi, portanto, tentativa de São Paulo se mostrar superior ao Rio, muito embora Oswald de Andrade e Menotti del Picchia, em seus artigos jornalísticos, entendessem que o Brasil devesse se curvar a São Paulo por ser a cidade o centro do Brasil. Vejamos a figura de Mário de Andrade para perceber, logo de início, que ele não negava a tradição e pensava no Brasil. Até mais: na América Latina. A prova mais cabal é “Macunaíma”, de 1928.
A mim, pareceu desnecessário, no livro de Ruy, tratar de fofocas, como casos extraconjugais de pessoas ilustres, fatos pitorescos e tiradas jocosas e trocadilhos. Acaso alguém sabia do bombardeio a toninhas de um navio brasileiro, na Primeira Guerra, julgando tratar-se de um submarino alemão? Vem ao caso saber que o rei da Bélgica não encontrou cama onde dormir no Palácio Guanabara por ser muito alto, tendo que entrar em ação uma socialite? Seria necessário saber dos romances ocultos de Washington Luís? Creio que sim e que não. Sim, se esses casos se inserirem numa espécie de história serial que ilustra os costumes de uma época. Não, se se tratarem de casos pitorescos, típicos de jornalismo escandaloso. Parece desnecessário também observar que Luiz Teixeira de Barros, um senhor de 111 anos de idade presumivelmente, era simpático, mas aspergia perdigotos ao falar. O livro está cheio dessas observações perfeitamente dispensáveis e frívolas.
É ilustrativo mencionar os nomes de Julia Lopes de Almeida, Théo-Filho, Chrysantème, Benjamim Costallat, Gilka Machado, Arthur Napoleão, Carmen Dolores, Paulo Barreto, Agrippino Grieco, Andrade Muricy, Murillo Araujo, Rodolpho Machado, José Oiticica, Renato Vianna, Harold Daltro, Rosalina Coelho Lisboa, Mercedes Dantas, Adelino Magalhães, Carlos Maul, Alvaro e Eugenia Moreyra, Mario Pederneiras e uma lista infindável de nomes. Entram nela também Lima Barreto, João do Rio, Olavo Bilac, Hermes Fontes, Coelho Netto, Alberto Nepomuceno, Jayme Ovalle, José Marianno Filho, Villa-Lobos, Manuel Bandeira, Ronald de Carvalho e muitos outros.
Julia Lopes de Almeida teve presença marcante no seu tempo. Sua obra voltou agora com a reedição de alguns livros seus. Ela estava em todas, fazia uma grossa sombra ao marido, também escritor, e mantinha um salão que reunia intelectuais, damas da sociedade e jornalistas, onde se travavam discussões elevadas, trivialidades e intrigas. Gilka Machado escandalizou o mundo literário quando lançou “Cristais partidos”, em 1915, seu primeiro livro de poesia com sua sensualidade e erotismo. Ruy observa que Mário de Andrade anotou na margem do seu exemplar de leitura repúdio à autora. Gilka foi uma poeta forte, pois, como mulher, desafiou o mundo dominado por homens. Mas ela começou como simbolista e jamais alcançou o modernismo, mesmo tendo avançado na sua poesia.
Na modernidade do Rio de Janeiro, reinavam muito ainda o parnasianismo e o simbolismo. Dos nomes citados acima, a maioria era datada. Eles ficaram presos a sua época. Ruy Castro mostra que Mario Pederneiras já usava o verso livre antes de seu xará Mário de Andrade. Poucos lembram de Mario Pederneiras. Muitos lembram Mário de Andrade. Sustenta que Jayme Ovalle foi um dos maiores poetas do Brasil. Ele deixou livros? Nenhum. Ao menos publicou algum poema em revistas? Nenhum. Deixou escritos póstumos? Nenhum. Então, como afirmar que ele foi um grande poeta? Pelas tiradas poéticas contidas numa entrevista concedida a Vinícius de Moraes. É um julgamento superficial.
Poucos conhecem a obra de Mário Pederneiras e sabem quem foi Jayme Ovalle atualmente. Da infinidade de nomes citados por Ruy Castro, poucos transcenderam sua época. Restaram Alberto Nepomuceno, Lima Barreto, João do Rio, Manuel Bandeira, Villa-Lobos, Ronald de Carvalho e poucos mais. Os outros morreram com seu tempo. Eram modernos? Sim. Eram modernistas? Não. Tentaram formular uma interpretação do Brasil? Muito poucos.
Mais um mérito para a obra de Ruy, além da escrita fluente e da pesquisa exaustiva: ele faz uma boa crônica jornalística do Rio de Janeiro nos anos de 1920, com destaque especial para a música popular e para o teatro, áreas sabidamente do seu interesse. Escreve muito pouco sobre cinema e nada sobre quadrinhos.