Camilla Silva
04/01/2020 13:54 - Atualizado em 08/01/2020 16:11
Ao chegar em um novo país, é preciso começar do zero. Muitos refugiados não conseguem validar documentos que comprovam formação profissional, por exemplo, e acabam precisando se encaixar em outras funções menos remuneradas. É o caso da venezuelana Yinesca Margarita Aponte, de 47 anos, que é professora em seu país, mas desde que se mudou para o Parque São Mateus, em Campos, em fevereiro de 2019, trabalha fazendo consertos em roupas. Mas este não foi o único problema com documentos que ela enfrentou. Divorciada, Yinesca conheceu Luciano de Abreu Guerra, de 46 anos, mas a falta de um procedimento burocrático na sua certidão impedia que ambos se casassem no Brasil. O problema foi resolvido na Justiça, após autorização da 1ª Vara de Família de Campos
— Nós viemos porque meu irmão ficou doente. Ele teve malária e os médicos falaram que ele iria morrer se ficasse lá, porque não tinha atendimento, faltava medicamentos, muitos médicos abandonaram o país. E, ainda tem a questão da fome. Aí nós soubemos pela igreja que existia a possibilidade de vir para cá, aí deixamos todas as nossas coisa e viemos. Tudo o que temos aqui, muitas pessoas doaram para nós, assim foi uma grande benção para nós vir para o Brasil. Hoje você olha ele, é uma outra pessoa. Ele estava muito mal, mas fizeram o tratamento, tudo certo e ele está muito melhor. Está trabalhando e muito feliz — explicou a venezuelana. Yniesca, que se divorciou após 15 anos de casamento, disse que não estava nos seus planos conhecer alguém no Brasil.
— Meus amigos me perguntavam: “você vai ficar sozinha?” Eu sempre respondia que sim. Não queria conhecer ninguém. Só que amigos em comum falaram que iriam me apresentar uma pessoa. Eles me apresentaram o Luciano e ele é um homem muito especial — contou.
Luciano conta que também tinha saído de um relacionamento e estava receoso. “Eu fiquei pensando um pouco, mas eu cedi e fui conhecê-la. Foi fácil perceber que ela é uma pessoa boa, muito amorosa, que cuida dos outros”, contou. Os dois ainda não marcaram a data, mas pretendem se casar ainda em 2020.
Calor e boa comida - Yinesca e família chegaram a Campos em fevereiro e reação dela às altas temperaturas da cidade não é muito diferente daqueles que a muito tempo moram na planície goitacá. “Nós chegamos e estava muito calor. Eu pensava que eu iria derreter. Em fevereiro, muitos vizinhos estavam na praia. Tudo ficava muito vazio. Pensamos: uau, não há brasileiros! (risos) Depois voltaram e conhecemos os vizinhos”, disse.
Outra ponto que ela destaca são coisas que ela gosta de comer em Campos desde que chegou. “Eu cheguei aqui magrinha, mas já engordei. A comida brasileira é muito boa. Eu adoro três coisas que na venezuela não se acha: linguiça calabresa, açaí e guaraná. Eu amo isso”, contou.
Decisão levou em conta risco de retorno
O advogado Igor Neres, responsável pela ação que resultou na autorização, explicou que quando os dois procuraram o cartório para realizar a habilitação do casamento, foi exigido o apostilamento do documento. “O apostilamento é como um certificado que autentica a origem de um documento público, para sua utilização em outro país. Este documento é emitido em papel moeda contendo assinatura, cargo de agente público, selo ou carimbo da instituição”, definiu. No entanto, esse procedimento só pode ser realizado no país de origem.
— A coisa na Venezuela ficou ruim. Minha irmã estudava medicina e ela foi tentar fazer o apostilamento quando pensamos em vir para cá, mas quando ela chegou na repartição, todos os documentos haviam sumido. A gente acredita que é porque eles imaginavam que estávamos querendo sair do país e isso não é bem visto lá — conta Yinesca.
Esse motivo foi destacada na decisão do juiz Heitor Carvalho Campinho publicada em dezembro do ano passado. “A primeira requerente já teve seu divórcio devidamente averbado, sendo certo que impor a ela a apresentação do apostilamento da certidão de casamento e divórcio, que só pode ser obtido em seu país de origem, seria onerar uma pessoa que já vem sofrendo as angústias de estar longe da Pátria. Assim, merece o pleito prosperar, no sentido da excepcional dispensa da apresentação, em processo de habilitação para casamento da requerente, de documentos que normalmente exigiriam a validação em repartição pública venezuelana”, escreveu.
O promotor Victor Queiroz, que atuou no caso, disse que “é fundado o temor de que os refugiados da Venezuela se encontram expostos a situação de risco e a perseguição caso tenham que retornar àquele país para obtenção de documentos outros”, contou.
Famílias recomeçam a vida em Campos
Em dezembro, a Folha trouxe uma matéria especial com famílias que buscaram refúgio em Campos. Há sete meses, Erick Quintero Rojas, de 44 anos, e a família saíram da Venezuela e vieram para o Brasil para fugir da crise que assola o país. Neste tempo, eles passaram por Roraima, Amazonas, São Paulo e Brasília, até chegarem a Campos, com apoio da Igreja Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, onde se estabeleceram. Eles residem no Parque São Benedito. Erick trabalha na área de eletrônica e, à noite, é professor de inglês em um curso particular. Ele destacou a alegria de estar no país e poder dar condições básicas à esposa, Maria Salazar, e aos filhos Kayri, Pahola, Derick e Erimar.
Para fugirem da guerra da Síria, iniciada em 2011, os irmãos Amer e Tamer Alsulaiman também optaram pelo Brasil. Há cinco anos, Amer, após passar um tempo no Líbano, chegou ao país, para onde veio em seguida o irmão e parceiro profissional. Atualmente, administram um restaurante de comida síria, na Pelinca, mas já tiveram um trailer de food truck e trabalharam em outros estabelecimentos.