Flamengo, Liverpool e o mundo
Aluysio Abreu Barbosa 20/12/2019 23:16 - Atualizado em 26/12/2019 14:30
“Espero que meus sonhos se tornem realidade” (“Hope that my dreams will come true”). É o verso da música “All My Loving” (“Todo o Meu Amor”), dos Beatles, referência maior da cidade de Liverpool. É com todo o seu amor que 42 milhões de almas, um entre cada cinco brasileiros viventes, assistirão ao confronto real com que tanto sonharam. Trinta e oito anos depois do mítico time de Zico, o Flamengo decidirá outro Mundial contra o Liverpool. A bola rola a partir das 14h30 de hoje, no Estádio Internacional Khalifa, em Doha, capital do Qatar. Campeão da América do Sul, o time carioca é apontado por seus torcedores e adversários como uma seleção brasileira. Campeão da Europa, o clube inglês exibe craques do seu continente, da África e do Brasil. É, sem favor, uma seleção mundial. Mas, quando o apito final do árbitro catariano Abdulrahman Al-Jassim ecoar na Península Arábica, o mundo do futebol conhecerá seu novo senhor. Que a História conhecerá de cor: Rubro-Negro ou Reds.
É também de cor, e salteado, que brasileiros e sul-americanos aprenderam a conhecer o time com que o treinador português Jorge Jesus iniciará o jogo. Os 11 só jogaram juntos sete vezes. E nunca perderam. Ao todo foram seis vitórias e um empate: Diego Alves, Rafinha, Rodrigo Caio, Pablo Marí e Filipe Luís; Willian Arão, Gérson e Éverton Ribeiro; Arrascaeta, Gabigol e Bruno Henrique. A dúvida é como o técnico alemão Jürgen Klopp escalará o time inglês. Se puser a força máxima entre os 20 jogadores que levou ao Qatar, entrará em campo com Alisson, Alexander-Arnold, Joe Gomez, Van Dijk e Robertson; Milner, Henderson e Keita; Salah, Firmino e Mané. O meia holandês Wijnaldum, que seria titular, vem de lesão muscular na coxa esquerda e não participou do último treino de ontem.
Não está descartado que o Liverpool possa poupar mais titulares para o seu compromisso da próxima quinta (26), quando enfrentará o vice-líder Leicester City pelo Campeonato Inglês. Em sua fase como Premier League, criada em 1992, o Liverpool nunca ganhou o mais qualificado campeonato nacional do mundo. Que atualmente lidera com 10 pontos de vantagem e é o principal objetivo assumido por sua torcida, técnico e jogadores. Na coletiva de ontem, Klopp tentou explicar a diferença na maneira como o Mundial é encarado por seus dois finalistas:
— O Flamengo foi enviado para cá do seu continente com uma ordem clara de vencer e voltar como heróis. Nossos torcedores disseram: “Fique em casa e jogue a Taça Carabao (da Liga Inglesa, da qual foi eliminado na terça com seu time sub-23, goleado de 5 a 0 pela equipe principal do Aston Villa)”. Essa é uma diferença enorme. Nós não podemos mudar isso. Mas estamos aqui e queremos vencer a competição, mesmo quando sabemos que é muito difícil porque o outro time é muito, muito bom. Mas é assim nas grandes competições.
Se o alemão é hoje considerado o melhor treinador do mundo, pelo trabalho consistente de quatro anos que desenvolve no Liverpool, seu colega lusitano precisou de apenas seis meses para eclodir uma revolução no futebol brasileiro. Desde o Santos de Pelé, em 1963, o Flamengo de Jesus se tornou o primeiro time a ganhar o Brasileiro e a Libertadores no mesmo ano. Antes de fechá-lo com a final do Mundial, o técnico rubro-negro disse na sua coletiva:
— A comparação que podemos ter (do Liverpool) com o Flamengo é que o Flamengo vem de uma temporada de títulos. Como o Bruno Henrique diz, são duas equipes que estão em outro patamar. O Flamengo consegue contratações de um bom nível no Brasil, mas não há comparação. Vamos enfrentar um campeão da Champions. São os melhores do mundo. O Flamengo entrou em uma órbita onde podemos fazer equilíbrio com diferença tática. A diferença é que os europeus têm os melhores jogadores do mundo.
Apesar das diferenças, Flamengo e Liverpool têm também muitas semelhanças. Taticamente, atuam compactados entre seus três setores, com a linha alta de marcação que buscam impor no campo do adversário. Ambos têm um trio de ataque capaz de tirar o sono de qualquer defesa do planeta. Somados os 18 gols do uruguaio Arrascaeta, aos 43 de Gabigol, mais os 35 de Bruno Henrique, foram 96 bolas no fundo das redes adversárias em 2019, média de 1,57 gol por jogo. No time inglês, apesar da fama maior contra adversários mais qualificados, os números da sua trinca ofensiva no ano são inferiores. Foram 66 gols, média de 1,34 gol por partida, com 30 do senegalês Mané, 24 do egípcio Salah e 12 do brasileiro Firmino.
Temidos pela qualidade dos seus homens de frente, Liverpool e Flamengo também podem dar medo aos seus torcedores por problemas na defesa. Relacionado por Klopp para a semifinal de quarta (18), contra o mexicano Monterrey, o holandês Van Dijk passou mal e nem chegou a sair do hotel. Mesmo sendo zagueiro, foi eleito pela Fifa como segundo melhor jogador do mundo em 2019, atrás apenas de Lionel Messi. Sua ausência foi nítida na facilidade que o adversário da quarta teve para armar jogadas de contra-ataque. Assim como na falha da linha de impedimento que permitiu ao time do México empatar o jogo — cujo placar de 2 a 1 só seria definido a favor dos Reds aos 45 do segundo tempo.
Sem o zagueiro holandês, considerado o melhor do mundo na posição, o Monterrey dos atacantes colombiano Pabón e argentino Funes Mori deu muito trabalho ao goleiro brasileiro Alisson na semifinal. E levantou a curiosidade: o que poderiam fazer na final do Mundial atacantes superiores, como os flamenguistas Bruno Henrique e Gabigol, sem a vigilância de Van Dijk? Ausente do treino de quinta (19), ele apareceu no de ontem. Se não puder jogar, será mais uma vez substituído na zaga do Liverpool pelo volante Henderson, posição em que atuou visivelmente desconfortável na quarta. O outro zagueiro do time inglês, Joe Gomez, jovem de 22 anos, é reserva do croata Lovren, que não viajou ao Qatar por contusão.
No Flamengo, os problemas na defesa também ficaram nítidos no gol que o time tomou do árabe Al-Hilal, para abrir o placar da outra semifinal do Mundial, na terça (17). A jogada construída no setor esquerdo da defesa rubro-negra, até a conclusão dentro da área, foi muito semelhante à do primeiro gol do River Plate, pela final da Libertadores. Como foram daquele lado que saíram dois dos quatro gols que Vasco e Santos fizeram, cada um, em seus últimos confrontos com o time de Jesus no Brasileirão.
A falha no sistema defensivo do Fla se deve à condição do experiente lateral-esquerdo Filipe Luís. Ele sente o ligamento lateral do joelho esquerdo desde o primeiro jogo contra o Grêmio, pela semifinal da Libertadores. E o problema físico é agravado taticamente pela limitação na cobertura do zagueiro espanhol Pablo Marí, alto e técnico, mas lento. Jesus está ciente da necessidade de solução. Que é dificultada tanto pela queda de rendimento dos volantes Arão e Gérson nos últimos jogos, quanto pelo fato de que o maior craque entre os 22 que entrará hoje em campo atua no ataque do Liverpool naquele setor: Mohamad Salah.
Do outro lado, Mané também deve dar trabalho ao lateral-direito Rafinha. Que, como Filipe Luís, pode apoiar menos do que de hábito, para não expor a defesa. Pelo Liverpool, os laterais também são destaque, considerados os melhores do mundo: Alexander-Arnold na direita, líder de assistências na Premier League, como demonstrou no gol de Firmino que deu a vaga à final de hoje, e Robertson na esquerda. Vindo do meio, quem costuma aparecer como homem-surpresa na área adversária é o guineense Keita. No lado oposto, quem faz esse papel é o meia-atacante Éverton Ribeiro, motor do Flamengo e municiador do seu ataque.
Pelo Rubro-Negro, quem tem saído do banco para fazer a diferença na criação de jogadas e ajudar a virar placares adversos é o meia Diego Ribas, típico camisa 10 que Jesus reinventou como segundo volante. O problema, como advertiu Zico, é que se hoje fizer um primeiro tempo ruim, como contra o River e o Al-Hilal, o time da Gávea pode ser punido por um adversário com grande poder ofensivo. E intensidade de jogo muito semelhante à sua, que não costuma diminuir após marcar o primeiro gol. Quem impuser suas características comuns de marcação alta, posse de bola e intensidade sobre o outro, terá vantagem no duelo de hoje.
Desde 2005, quando o Mundial de Clubes passou a ser disputado entre os campeões de todos os continentes, não só entre os da América do Sul e da Europa, esta nunca deixou de ter um representante na final. Que nenhum time sul-americano conseguiu mais vencer propondo o jogo. Só na base de esquemas defensivos em busca de uma bola de contra-ataque. O Santos de Neymar tentou atuar de igual para igual em 2011, mas pegou o Barcelona de Messi no auge e levou um passeio de 4 a 0. Parecido com os 3 a 0 que o Flamengo impôs ao Liverpool “em dezembro de 81”, como canta a plenos pulmões a maior torcida da Terra.
É pela glória de Zico que o Flamengo joga hoje. Diante do mesmo grande time da terra dos Beatles, o placar final será incapaz de alterar os versos do rubro-negro Ary Barroso para o samba “Não Posso Acreditar”. Que também é conhecido nas rodas de bamba cariocas como “Sonhei”: “Dizem que o sonho é mentira/ É por isso que eu te digo/ Que não fiquei cismado/ Quando sonhei contigo”.

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