Rumo ao Modernismo (final): Mestres do passado e Paulicéia Desvairada
05/12/2019 19:52 - Atualizado em 10/12/2019 16:06
Por Arthur Soffiati
Entre 1917 e 1922, o desejo de renovação nas artes fervilhava em São Paulo, Rio de Janeiro e Recife, principalmente. Em São Paulo, Oswald de Andrade, Menotti del Picchia e Cândido Mota Júnior publicavam com frequência artigos de combate na imprensa da cidade. Em síntese, a postura deles podia se resumir a três pontos: crítica severa ao passadismo, que consideravam imitação do que na Europa já estava superado; defesa da renovação nas artes, entendendo como futurista todo jovem artista comprometido com a modernização; e a posição de São Paulo como pioneiro no processo de renovação. Em suma, os passadistas deviam reconhecer a importância dos futuristas, e o Brasil deveria curvar-se ante São Paulo.
De novembro de 1920 a maio de 1921, Mário de Andrade escreveu cinco artigos intitulados “De São Paulo” e publicados na Ilustração Brasileira, do Rio de Janeiro, informando sobre a efervescência cultural de São Paulo. Eles foram reunidos no livro “De São Paulo: cinco crônicas de Mário de Andrade - 1920-1921” (São Paulo: Sesc/Senac, 2004). Em 1921, de um só fôlego, Mário redige os poemas de “Pauliceia desvairada”. Alguns amigos seus, primeiramente, e jovens intelectuais do Rio de Janeiro, entre eles Manuel Bandeira, em seguida, conheceram o livro antes de sua publicação. Sem mencionar o autor, Oswald de Andrade publicou, no Jornal do Comércio (Edição paulista) de 27/05/1921, o artigo “O meu poeta futurista”, saudando “Pauliceia desvairada” como marco fundamental do modernismo.
O artigo de Oswald deu margem a gracejos. No mesmo Jornal do Comércio, publicou-se o soneto “Futuro condicional”, de autor que só se assinou como F.. Satirizando um poema de Mário publicado por Oswald, o soneto diz:
O intelectual brilhante Oswald de Andrade
Divulgou lisamente, em seu artigo,
O plano de arrasar tudo o que antigo
For em Arte e “bancar” a novidade.
E, para tal provar à saciedade,
Citou soberbos versos. Mas que digo?
Se não os entendi! Perdoe o amigo
E não me leve a mal esta verdade!
Lendo a poesia, eu me julguei maluco.
Obra-prima será talvez “o suco”,
Doce transporte do supremo gozo.
Penso, no entanto, que o bizarro Artista,
Embora seja um poeta futurista,
Não é, por certo, um poeta futuroso.
Estava iniciada a polêmica. O próprio Mário escreveu um artigo no mesmo jornal, em 06/06/1921, refutando a condição de futurista. Ele afirma estar esclarecendo a posição do autor de “Pauliceia desvariada”, que diz ser seu amigo. Assim, Mário de Andrade não se expõe. Nesse artigo de linguagem despojada e fluente, bem mais moderno que a de Oswald, ele explica que o poeta de “Pauliceia” não é futurista. Bem ao contrário, ele reconhece a importância de artistas do passado, como Frei Luís de Sousa, Camões, Garret e Machado de Assis. Além do mais, Mário esclarece que o poeta é católico praticante, rejeitando “o banimento completo da lembrança de Deus, o desrespeito absoluto pelo belo idioma, também gentil, e o abandono das noções de pátria e principalmente de tradição...”.
Mas a postura de Mário no modernismo revela ser a mais clarividente, culta e ponderada nos artigos que escreveu e publicou em 1921 sob o título geral de “Mestres do passado”. Ele escolhe Francisca Júlia, Raimundo Correia, Alberto de Oliveira, Olavo Bilac e Vicente de Carvalho para fazer um balanço do parnasianismo. Agressivo, mas com graça e ironia, ele defende a tese geral de que os parnasianos já haviam dado a sua contribuição, e que o momento deles passara.
Não apenas, porém. Mário mostrava o dano que o parnasianismo causara à poesia brasileira ao afastá-la da construção de uma expressão nacional, que estava em marcha por Gregório de Matos, pelos árcades, pelos românticos, por Machado de Assis, etc. No último artigo da série, ele escreve: “... esta minha visita apressada ao corredor dos Mestres do Passado não é uma negativa absoluta ao valor e à obra desses defuntos. Gosto pouco desses fantasmas, porém admiro-os bastante. Admiro-os pelo quanto obraram, pelo trabalho e paciência que tiveram. Parece-me incrível que passassem toda uma existência na terra tumultuária, medindo pacientemente versos, sem só uma vez sentirem a prisão de Ariel, sem uma só vez sorrirem, errando o alexandrino no meio daquela procissão de longos e pesados metros puros. Medir pés de versos uma vida inteira! Meu Deus, que sapateiros formidáveis! Não os amo porém. Com os produtos enganosos de sua fábrica obstruíram nosso futuro e nosso passado literário”.
“Com o aparecimento deles desapareceram os poetas antigos brasileiros. Porque Bilac escreveu ‘Morte do tapir’ ninguém mais lê os ‘Timbiras’. ‘Última jornada’, do sublime Machado, o magnífico ‘Uruguai’, de Basílio da Gama são abortos de uma infância fragílima! Porque Bilac escreveu friamente sobre ‘Frineia’, não existem mais comoções e amores no Brasil. Não brotam mais lágrimas. Não irrompem mais os gritos nem as risadas. E Castro Alves, Fagundes Varela, Álvares de Azevedo, Dirceu, e Porto Alegre e Gregório de Matos são pueris manifestações de sentimento e de vida. Ninguém mais sabe transportar-se ao tempo deles para compreendê-los. Pudera! Foram para a Grécia! Depois de visitar o Partenon, quem pode admitir a arquitetura literária e movente ‘dos jacarandás, das maracanaíbas,/canjeranas e ipês, ubatãs e braúnas’.”
O conjunto de artigos formadores da série “Mestres do passado” revela um jovem intelectual estudioso, erudito, culto, pesquisador e renovador que “Pauliceia desvairada”, publicado em 1922, confirmará. Entre 1920 e 1930, Mário de Andrade promoverá uma guinada modernizante na poesia, no conto, no romance, na música e nas artes plásticas. Não conheço livro reunindo “Mestres do passado”|com os devidos comentários. Eles não figuram no livro “Brasil: primeiro tempo modernista -1917/29 — documentação” (São Paulo: IEB/USP, 1972). Mas foram republicados por Mário da Silva Brito como apêndice ilustrativo de “História do modernismo brasileiro: antecedentes da Semana de Arte Moderna” (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974).
Às vésperas do centenário da Semana de Arte Moderna, esses artigos deveriam ser publicados em livro como homenagem a Mário e à Semana que, queiram ou não, construiu piso seguro para as artes brasileiras atuais. Um balanço de toda a discussão anterior à Semana também merece livro consistente.

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