Aluysio Abreu Barbosa
22/11/2019 20:57 - Atualizado em 02/12/2019 13:57
“Quieta que eu quero ouvir Flamengo e River Plate”. O verso do tricolor Chico Buarque foi escrito para a música “Biscate” em 1993. E nunca foi tão válido quanto hoje. Os dois clubes do Rio de Janeiro e Buenos Aires já escreveram seus nomes na história do futebol. Mas hoje disputarão pela primeira vez uma final da Libertadores da América. A partir das 17h de Brasília, no Estádio Monumental de Lima, o Peru, o Brasil, a Argentina vão parar para assistir. E se dividirão entre torcer a favor e contra. Vascaínos comporão o Rivasco. Xeneizes, como são chamados os torcedores do Boca Juniors, clube mais popular entre os argentinos, fecharão com o Flamengo, reconhecido pela Fifa como o mais popular do mundo. Quem dúvida tiver, basta ver o fenômeno antropológico que nos últimos dias faz as ruas da capital peruana serem confundidas com o Baile do Vermelho e Preto do carnaval carioca.
As diferenças entre os dois finalistas da Libertadores são de raiz. Chamado pelos adversários de “Time da Favela”, o Flamengo se assemelha ao Boca em sua popularidade democrática. Enquanto o River atende pela alcunha de “Los Millionarios”, condição elitizada que remete no Brasil ao Fluminense e ao São Paulo. Mas, “Favela” ou “Millionarios”, Fla e River também têm características em comum: seus êxitos no futebol refletem a seriedade da gestão administrativa fora do campo, onde servem de exemplo a seus rivais locais. E, apesar dos vários grandes jogadores de lado a lado, as principais estrelas dos dois times hoje estarão à beira do gramado: o técnico português Jorge Jesus, que provocou uma revolução no futebol brasileiro, e o ex-craque Marcelo Gallardo, considerado o melhor treinador da América Latina e cotado até para assumir o Barcelona de Lionel Messi.
Conhecido por não poupar jogadores em jogos de menos importância, Jesus entrará com sua força máxima. A escalação já está decorada pelos flamenguistas: Diego Alves, Rafinha, Rodrigo Caio, Pablo Marí e Filipe Luís; Willian Arão, Gérson e Arrascaeta; Éverton Ribeiro, Gabigol e Bruno Henrique. A dúvida, que só será desfeita momentos antes da partida, fica por conta do time que Gallardo levará a campo. O mais esperado é que entre com Armani, Montiel, Martínez Quarta, Pinola e Casco; Enzo Pérez, De La Cruz e Palacios e Nacho Fernández; Borré e Suárez. Mas se decidir entrar com uma escalação mais defensiva para tentar conter o ímpeto ofensivo do Flamengo, pode adotar a linha de três zagueiros que andou treinando. No caso, o beque chileno Paulo Díaz entraria no lugar de um meia: Palacio ou De La Cruz.
Em outra semelhança, Flamengo e River têm seus respectivos artilheiros, Gabigol e o colombiano Borré, brilhando no futebol da América do Sul, depois de terem fracassado no futebol da Europa. Na Libertadores, no entanto, o atacante brasileiro tem brilhado mais. Lidera a artilharia do Sul-Americano, com sete gols. Pelo clube portenho, os dois que mais marcaram até agora foram os meias Nacho Fernández e De La Cruz: cada um balançou as redes três vezes. Não por acaso, os dois estão previamente indicados como candidatos do River a craque do torneio. Pelo Flamengo, além de Gabigol, o outro pré-candidato é seu parceiro de ataque. Destaque rubro-negro da temporada, sobretudo em momentos decisivos, Bruno Henrique já marcou cinco gols na Libertadores. E tem o mesmo número de assistências, estatística que lidera na competição.
A variação na escalação e no esquema do River também pode ocorrer durante a partida, a depender do seu desenrolar. Há quem aposte que a dúvida seria só um estratagema para tentar confundir o treinador português, que fez treinos fechados não para esconder variações de escalação ou táticas. Mas para treinar o que tem sido uma das maiores armas ofensivas do Flamengo: jogadas ensaiadas de bola parada. Em contrapartida, Gallardo tem no clássico volante Enzo Pérez uma das armas para descobrir os segredos do técnico rubro-negro. O jogador argentino era um terceiro homem de meio de campo, mais próximo ao ataque, até ser treinado por Jesus no Benfica de Portugal. Foi ele quem convenceu Pérez a recuar à posição de volante, onde atua até hoje e é um dos destaques do River. Volta de contusão no ombro, mas deve jogar.
O que não é segredo é aquilo que transformou o Flamengo sob o comando de Jesus no melhor time do Brasil com sobras: posse de bola, marcação sob pressão, compactação entre os três setores, mobilidade, velocidade e, sobretudo, intensidade. Titulares absolutos do meio de campo do Flamengo que conquistou a Libertadores em 1981, quando comparam aquele time mítico ao atual, Zico, Adílio e Andrade lembram do princípio do boxe que o falecido treinador rubro-negro Cláudio Coutinho adaptou ao futebol. Quando o pugilista adversário sente um golpe, análogo ao gol, não é o momento de parar para tentar ganhar por pontos. Mas de encaixar quantos golpes mais forem necessários para vencer por nocaute. Foi o caso da goleada aplicada pelo Rubro-Negro em seu último jogo na Libertadores: os 5 a 0 na semifinal sobre o Grêmio, no Maracanã. Entre o Flamengo de 81 e o de hoje, para quem viu o ex-campeão peso pesado Mike Tyson lutar no início de carreira, é mais ou menos aquilo.
Se não tem a mesma intensidade que o Flamengo apresenta há cinco meses, o River é o atual campeão da Libertadores, fruto de um trabalho consistente há cinco anos. Na sua fase de recuperação após cair à segunda divisão do Campeonato Argentino em 2011, para voltar à primeira no ano seguinte, o jogo de hoje será a terceira final de Libertadores que o clube disputará com Gallardo como técnico. Sob seu comando, o River foi senhor da América do Sul em 2015 e 2018, repetindo os títulos que o clube havia conquistado em 1986 e 1996. Quando “Los Millionarios” entrarem em campo contra o “Time da Favela”, disputarão a 15ª final de campeonato com Gallardo, que já conquistou 11 títulos nesses últimos cinco anos. É o patrimônio inegável de um campeão, independentemente do placar final no Monumental de Lima.
Virtual campeão brasileiro de 2019, o Flamengo pode garantir matematicamente este título sem entrar em campo. Basta que o vice-líder Palmeiras não vença o Grêmio neste domingo (23). Mas os 81 pontos (13 de vantagem) do Rubro-Negro na tabela do Brasileirão remetem ao objetivo mais alto que será decidido na véspera: foi em 1981 que Zico e companhia conquistaram não só a única Libertadores do Rubro-Negro, como depois o Mundial, com um passeio de 3 a 0 sobre o Liverpool, em Tóquio. Com aparência de destino, é o mesmo clube inglês que, após levantar mais uma Champions da Europa, espera 38 anos depois o vencedor entre Fla e River no Mundial deste ano, no Qatar. A final será jogada em 21 de dezembro.
“Em dezembro de 81/ Botou os ingleses na roda/ Três a zero no Liverpool/ Ficou marcado na história/ E no Rio não tem outro igual/ Só o Flamengo é campeão mundial/ E por isso o seu povo/ Pede o mundo de novo”. É o que cantam 40 milhões de flamenguistas — um entre cada cinco brasileiros — na adaptação da música “Primeiros Erros”, de Kiko Zambianchi, que fez sucesso nos anos 1980, tempo das glórias de Zico. Sonhando revivê-las, Bruno Henrique, Gabigol, Arrascaeta, Gérson, Filipe Luís, Éverton Ribeiro e Jorge Jesus despertaram uma nação. Que no meio do caminho tem o River, tem o River no meio do caminho.Este sábado 23 fechamos por futebol
CRÔNICA
Marcelo Gantos*
O convite ao desafio de escrever sobre futebol é, parafraseando Jorge Valdano, o de escrever sobre homes que jogam ou vêm jogar. Entretanto, no meu caso, o futebol inexoravelmente vai além, é uma alegria que dói. A validade desta afirmação estará em jogo este sábado que se avizinha, quando o juiz apite e de início ao pleito continental. Até ali o tempo do torcedor está em suspenso e a data ensejada de ver a bola rodando no Monumental de Lima parece não chegar nunca.
Respira-se ansiedade nas ruas e nas casas dos torcedores da nação rubro-negra, que espera palpitante e com alegria inusitada o desenlace desta epopeia com sabor de drama pelo que estará em disputa. Poderá o Flamengo quebrar o jejum da Liberta, como gostava chamar meu filho Lautaro a cobiçada taça continental? Tento fugir com desculpas intelectuais dessa ansiedade e sentimento plural que mobiliza a metade mais um deste país. Mas é impossível, pois meu coração de torcedor também bate forte. Com um agravante especial: tanto Flamengo quanto River Plate são os times dos meus amores, um desde o berço quase prescritivamente por mandato familiar e opção, outro por destino e conversão. Desafiadora contradição que faz parte de minha experiência vital. Assim como ser argentino e me sentir e brasileiro ao mesmo tempo.
Apesar da tentativa racional de amenizar e justificar perante gregos e troianos a complexa natureza dessa contraditória paixão e amálgama identitária, a potência e ineditismo deste momento decisivo, único e irrepetível durante o resto da minha existência, obriga-me pelo amor ao futebol a assumir e viver com grandeza e liberdade esta condição proibida de bigamia de chuteiras.
O que sabemos do futebol é que se trata de uma aventura coletiva na qual, em distinta medida, triunfam e fracassam todos, embora nos encante santificar ou apedrejar apenas um responsável. Ainda que nos encante ter sempre a razão, bastarão apenas alguns segundos de bola rodando para que, em meio da guerra de nervos que todo jogo cria, se desate um terremoto emocional e a cordura e a mesura saiam disparadas para o espaço sideral. O que sentimentalmente me provoca esta espetacular final entre River e Flamengo é uma força imprevisível chamada futebol e que, seja qual for o resultado, não nos deixará em paz por muito tempo. O futebol, como alguma vez decretou Juan Sasturain, independente do eventual resultado, é infinito.
Este sábado desde cedo a porta de nossa vida ficara “Fechado pelo Futebol”. Tentarei assistir o jogo animado não pelo dever de ver um dos times ganhar e se coroar. Mas pelo prazer do gozo da fantasia que o futebol nos oferece de tanto em tanto. Sobretudo em épocas tão sombrias para sonhar, como as que vivemos em nosso país e parte do continente. Deus salve o futebol. E que triunfe o “mais” melhor.