A hora da estrela
Christiano Fagundes 03/10/2019 17:26 - Atualizado em 08/10/2019 16:07
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Neste despretensioso artigo, iremos discorrer, ainda que como um voo de pássaro, acerca da vida e da obra da eminente escritora Clarice Lispector. Clarice nasceu em Tchetchelnik, na Ucrânia, em 10 de dezembro de 1925. Com apenas dois meses de idade, veio com a família para o Brasil.
No texto abaixo, Clarice fala sobre a sua infância: “Sou brasileira naturalizada, quando, por questão de meses, poderia ser brasileira nata. Fiz da língua portuguesa a minha vida interior, o meu pensamento mais íntimo, usei-a para palavras de amor. Comecei a escrever pequenos contos logo que me alfabetizaram, e escrevi-os em português, é claro. Criei-me em Recife. Com sete anos eu mandava histórias e histórias para a seção infantil que saía às quintas-feiras num diário. Nunca foram aceitas”.
A primeira obra publicada por Clarice foi o romance “Perto do coração selvagem”. Esse romance provocou verdadeiro espanto na crítica e no público da época. A crítica reconheceu o talento da escritora de apenas 17 anos de idade, mas apontou-lhe numerosas falhas, mormente, de construção. Abaixo, uma parte da crítica feita por Álvaro Lins, conceituado crítico daquela época: “Li o romance duas vezes, e ao terminar só havia uma impressão: a de que ele não estava realizado, a de que estava incompleta e inacabada a sua estrutura como obra de ficção”.
Na verdade, com a obra supracitada, Clarice Lispector introduzia, na literatura brasileira, novas técnicas de expressão. A escritora quebrava a sequência linear: começo, meio e fim, e unia a prosa à poesia. Tudo isso exigia uma nova revisão de critérios avaliativos. Lispector nunca aceitou o rótulo de escritora feminista. Esse rótulo lhe foi dado pelo fato de muitas de suas obras terem como protagonistas personagens femininas, quase sempre situadas em centros urbanos. No fragmento abaixo, Clarice Lispector explica sua vocação para a literatura: “[...] talvez porque para as outras vocações eu precisaria de um longo aprendizado, enquanto que para escrever o aprendizado é a própria vida se vivendo em nós e ao redor de nós. É que não sei estudar. E, para escrever, o único estudo é mesmo escrever”.
A escritora abordou temas como, por exemplo: as relações entre o eu e o outro; a falsidade das relações humanas; o esvaziamento das relações familiares e, principalmente, a própria linguagem: única forma de comunicação com o mundo.
Clarice é considerada uma escritora intimista e psicológica. A escritora tinha uma certa preocupação com a revalorização, com o uso da palavra, explorando-lhe os limites do significado.
Registraremos agora algumas declarações feitas pela escritora sobre o ato de escrever: 1) “Algumas pessoas cosem para fora; eu coso para dentro”. 2) “Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada... Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro...”. 3) “Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto — e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidade de mar (...)”. 4) “Minha liberdade é escrever. A palavra é o meu domínio sobre o mundo”. 5) “Mas já que se há de escrever, que ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas”. 6) “Eu só escrevo quando eu quero, eu sou uma amadora e faço questão de continuar a ser amadora. Profissional é aquele que tem uma obrigação consigo mesmo de escrever, ou então em relação ao outro. Agora, eu faço questão de não ser profissional, para manter minha liberdade”. 7) “O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção é que obtenho o que ela conseguiu”. 8) “Escrevo porque encontro nisso um prazer que não consigo traduzir. Não sou pretensiosa. Escrevo para mim, para que eu sinta a minha alma falando e cantando, às vezes chorando...”. 9) “Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada”. 10) “É preciso coragem. Uma coragem danada. Muita coragem é o que eu preciso. Sinto-me tão desamparada, preciso tanto de proteção... porque parece que sou portadora de uma coisa muito pesada. Sei lá porque escrevo! Que fatalidade é esta?”.
Necessário ressaltar que a obra de Clarice não deixa de ser também social, filosófica, existencial e metalinguística. A última obra da escritora, intitulada “A hora da estrela”, de 1977, é uma narrativa que, entre outros aspectos, aborda a condição social de uma migrante nordestina no Rio de Janeiro.
Nesse romance, a personagem principal é Macabéa, uma moça nordestina muito pobre, de 19 anos de idade, que perdeu os pais quando era criança. Veio morar no Rio de Janeiro, dividindo o quarto com outras quatro mulheres. Macabéa trabalha como datilógrafa e era apaixonada pelo chefe, por quem foi dispensada por incompetência. Nessa hora, diante de certos comportamentos da empregada, o patrão se compadece e decide não mais dispensá-la. A morte da personagem é um dos momentos mais “intrigantes” da literatura nacional, e só lendo esta fantástica obra para saber como se deu. O narrador nesta hora faz divagações e, até mesmo, reflexões filosóficas. É impossível ler esta obra e não se sentir “tocado” pelo “quase” não-viver da personagem central. Aliás, como afirma Castello: “Ninguém lê Clarice, ou um grande escritor como Clarice, sem ser devastado pelo que lê”.
Clarice casou-se com o colega de faculdade Maury Gurgel Valente e concluiu o curso de Direito. Seu marido, por concurso, ingressa na carreira diplomática. Clarice acompanhou o marido em viagens à Itália, à Suíça e aos Estados Unidos. Retornou ao Rio de Janeiro na década de 1950 e morreu em 1977, quando foi lançado o romance que dá título a este texto.
* Christiano Fagundes é membro da ACL, autor de 18 livros, professor universitário e vice-presidente da 12ª Subseção da OAB.

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