Em contraste a entradas e saídas na área de emergência do Hospital Ferreira Machado (HFM), permeada pela corrida contra o tempo necessária aos primeiros socorros, um pequeno canteiro, próximo a um trailer em frente à unidade, reúne mensagens destinadas aos que por ali passam em busca de conforto. A caixa colorida, de ferro, pregada à árvore no chamado Cantinho da Paz, cercada por desenhos de flores e borboletas e um jardim ornamentado com garrafas pet, possui um cadeado. Sob olhares mais atentos, é possível perceber que basta afastar o gancho para ter acesso à outra caixinha, de papelão, cujo recado encontrado na parte interna, “Pegue a sua mensagem”, deixa clara a intenção da idealizadora do recanto, a professora aposentada Mírian de Faria Cunha Ribeiro, de 55 anos, a quem a repórter buscou por 13 dias até conseguir o primeiro contato.
“Eu não quero aparecer. Outras pessoas, no decorrer desse tempo, me procuraram para falar, mas eu não dava entrevista porque esse não é o meu objetivo. Não é isso que eu quero. Aquilo tem um significado profundo para mim”, disse dona Mírian, em conversa por telefone, na tarde de terça-feira (10), quando aceitou ser entrevistada, mas com uma condição: não aparecer em fotos.
No dia 28 de agosto, a jornalista conheceu o Cantinho da Paz, durante uma pauta no HFM, e se encantou com a generosidade presente no espaço e as intenções de sua ainda desconhecida criadora, da qual não sabia o nome. Buscou-a por quase duas semanas, sempre acompanhada pelo repórter fotográfico Isaías Fernandes, com idas ocasionais não só à porta, mas também à Pediatria da unidade hospitalar, para onde ela doou quadros de personagens de histórias infantis que decoram a sala de espera. Em 12 dias, a reportagem colheu poucas informações sobre a mulher: apenas que ela é conhecida como dona Mírian e é professora aposentada.
A repórter resolveu recorrer à tecnologia para encontrar pistas sobre dona Mírian. Em buscas por redes sociais, localizou, em uma postagem da página Campista Polêmico 2.0, uma foto dela, de costas, enfeitando o Cantinho. A imagem foi feita por Stefany Maia Imbelloni, com quem entrou em contato. Ela também não conhecia a professora e desejou sorte na busca. Retornou à postagem e, lendo os comentários, encontrou, no 13º dia, Michela Guimarães. A moça e o noivo pedalam com o marido de dona Mírian. Em poucas horas, ela respondeu a mensagem enviada. A jornalista contou brevemente a Michela sobre a busca pela aposentada até chegar a ela, que relatou a admiração pelo trabalho de dona Mírian. “Sim. O projeto é lindo sim. Tenho uma mensagem até hoje que peguei na caixinha da casa deles. Ela deixa no muro”, revelou Michela, que, prontamente e com êxito, intermediou o contato pessoal com a criadora do Cantinho da Paz.
O espaço, que existe há mais de um ano, é destinado a consolar os que abrem a caixinha de papelão em busca de palavras de conforto. “As pessoas estão com muita dor na alma e no coração. Hospital é difícil. Os profissionais trabalham com dificuldade; tem os doentes e, também, as pessoas que passam por ali”, afirmou Mírian.
Retomado o contato na manhã de quarta-feira (11), a professora relatou que a produção e a distribuição das cartas começaram quando ela se aposentou e decidiu buscar uma nova atividade à qual se dedicar. Inicialmente, os recados eram entregues por Mírian no Centro de Campos e no Shopping Boulevard. O encontro com o que viria a ser o Cantinho da Paz aconteceu quando ela acompanhava uma familiar do marido, internada no Hospital Ferreira Machado, e visualizou a estrutura necessária para desenvolver o projeto.
“Eu fui tomar um café e olhei a árvore com a caixinha. Perguntei ao João (rapaz que a atendeu no trailer) se alguém colocava algo ali. Ele disse que, no início, tinha flanelinha que colocava livros, mas as pessoas nunca devolviam. Depois, ele foi pro Rio e tinha outro flanelinha que guardava pano ali. Perguntei ao João se ninguém tomava conta, e ele disse que não. Quando vi, eu vislumbrei tudo. Veio na minha mente a caixinha, a cartinha. Eu já fazia cartinha e distribuía no Shopping Boulevard. Quando eu aparecia lá, o pessoal das lojas sempre queria. Eu deixava nos cantinhos e, também,fazia quadrinhos e deixava. Aí, pensei: por que não no hospital? É aqui que o trabalho tem que ser feito”, relatou.
Em junho de 2018, então, Mírian iniciou o projeto do Cantinho da Paz. Para decorar a árvore, a aposentada utilizou desenhos de borboletas, flores e, ainda, plantas em garrafa pet cortadas ao meio. Depois, vieram as cartas, todas manuscritas, únicas e feitas por ela, com mensagens próprias ou citações de livros e da Bíblia. “Isso foi crescendo, as pessoas foram gostando. Sempre que eu vou lá, me falam que pegaram cartinhas; que havia pessoas que estavam muito tristes e melhoraram. Era isso que eu queria fazer, me dedicar. É uma coisa muito prazerosa para mim, um compromisso que assumi comigo e com aquele cantinho e com as pessoas que passam ali”, recordou, ressaltando que o trabalho não tem ligação com religião. “Ali, é religião da fraternidade. Não é direcionada a nenhuma religião, e sim ao anônimo, ao alívio, à fé, a não desanimar e desistir de si mesmo”, disse.
A opção por recados manuscritos foi feita pela aposentada porque, para ela, quando as pessoas escrevem de próprio punho, transmitem energia e boa vontade. “As pessoas, vendo as cartas, se sentem mais amparadas. E cada carta é uma carta diferente porque a pessoa que vai buscar é diferente”, ressaltou. Durante toda a conversa, Mírian, que deseja ver, em Campos, outras iniciativas como a do Cantinho, reafirmou que a intenção do lugar é proporcionar bem-estar a quem estiver aflito. Ela se lembrou de uma história de duas moças que a abordaram durante uma ida ao espaço:
“Um dia, cheguei lá e havia duas moças chorando, sentadas ali. Eu não as conhecia. Cheguei para colocar cartinhas, e elas se levantaram e perguntaram: ‘é a senhora que coloca cartinha aí?’, e eu respondi que sim. Elas levantaram, me abraçaram,chorando, e disseram:‘a senhora não sabe quanto ajuda a gente’. Elas estavam muito tristes mesmo. Aquele abraço foi um abraço em que eu procurei transferir para elas energia para que melhorassem. É recorrente as pessoas se aproximarem.”
Limpeza – Apesar da satisfação por transmitir conforto e alegria ao próximo, Mírian lamenta a falta de conservação e cuidado destinados ao espaço por parte de pessoas que depositam lixos, como pontas de cigarro, restos de comida em quentinha, luvas, tipoias e até roupas. Para ela, a sujeira que cerca a área é “uma pena”:
“Já levei pá, vassoura, limpei. As pessoas jogam tudo no chão. Colocaram uma cesta de lixo nova, com a carinha, mas despencou dali. É necessário para que as pessoas tenham, pelo menos, um lugar mais limpo. Porque fica muita gente ali fora, sentada na barraquinha. Quando posso, tiro e jogo fora”, afirmou a professora.
Pinturas também foram doadas à Pediatria
Com 27 anos de profissão, sendo 17 destes dedicados à educação de crianças com necessidades especiais na Associação de Proteção e Orientação aos Excepcionais (Apoe), Mírian também optou por continuar a cuidar de meninos e meninas, mas por meio da arte. Além da atuação no Cantinho da Paz, ela doou quadros para a Pediatria do Hospital Ferreira Machado. Entre os personagens pintados, estão a Pequena Sereia, o Homem-Aranha e a Peppa Pig. A doação ocorreu porque, com a criação do espaço, a professora fez amizade com funcionários da unidade hospitalar.
— Aí, entrei na emergência infantil. Quando eu entrei, as paredes eram limpas, direitinhas, mas cinzas. Pensei: ‘mas como assim?’. E é uma equipe muito dedicada e maravilhosa. Perguntei a um rapaz que fica na recepção, chamado Alex, se eles queriam que eu pintasse quadros com temas infantis para alegrar ambiente. Ele falou com a enfermeira-chefe, que veio falar comigo e disse que poderia. Aí, eu pintei e levei para lá. Eles amaram, adoraram ter uma coisa diferente, com temas infantis — contou.
Além de oferecer à Pediatria, Mírian também propôs doar novas pinturas, com paisagens, para decoração para a área destinada a adultos, mas a proposta não foi aceita e o motivo não foi revelado. Mesmo com a recusa, ela destacou a satisfação em poder entregar os quadros à ala infantil: “Foi imensamente satisfatório para mim e para eles (funcionários), que ficaram muito alegres. Também foi para as crianças, que vão lá e se distraem olhando as figuras infantis, e isso ameniza a dor. Eu acho que o objetivo é esse: o alívio, o amparo. Acho que as pessoas se sentem muito desamparadas no mundo, sabe? Da forma como as coisas estão, as pessoas estão sentindo isso. Então, eu acho que é um alívio.”