Matheus Berriel
27/09/2019 21:07 - Atualizado em 03/10/2019 13:17
O pão e o suco de uva — alusivo ao vinho — distribuídos e ingeridos coletivamente, numa representação da comunhão do Corpo e Sangue de Jesus Cristo. Natural dentro das igrejas, a ceia passou a ter um sentido duplamente especial para dezenas de pessoas com gênero sexual fora dos padrões impostos pela sociedade, que na noite da última quarta-feira (25) participaram de um culto cristão no espaço Varanda Amarela, em Campos, com entrada solidária. Um latão serviu como púlpito para o pastor Henrique Vieira pregar a um público quase inteiro LGBTQIA+. Pessoas que, acostumadas com o discurso de ódio, emocionaram-se ao ouvirem falar de amor.
“De fato, um ambiente muito lindo. É nítida a presença de Deus aqui”. Assim Henrique Vieira começou sua pregação. Ele que, além de pastor evangélico, é também professor, ator, ex-vereador em Niterói pelo PSOL, militante dos Direitos Humanos e... casado com uma mulher. O primeiro heterossexual a discursar na Comunidade Bolha, projeto realizado há aproximadamente quatro meses no Varanda Amarela, com objetivo de acolher pessoas LGBTQIA+ que foram excluídas ou por algum motivo sentiram-se desabrigadas em sua religião.
— A gente não quer que ninguém concorde, que ninguém ache que está legal ou está errado. A gente não está se importando com os outros, mas com a gente. Então, é um espaço onde as pessoas se sentem à vontade, abrem os seus corações. A grande maioria é de pessoas que foram excluídas pelos pais, pela família, pela sociedade. São vários contextos. É um espaço onde as pessoas podem ser quem elas querem ser, quem são, sem um julgamento — explicou Fernando Borges, administrador do Varanda Amarela.
Homossexual assumido, Fernando frequentava uma Igreja Batista e queria ser pastor. Chegou a ter um casamento hétero para “curar” sua homossexualidade. O que podia ser interpretado como doença, agora é declarado sem receio: “Gay, bem bicha mesmo, viado, pode me chamar do jeito que for”. Às terças-feiras, dias em que geralmente acontecem os encontros da Comunidade Bolha, quase sempre é o próprio Fernando quem começa falando. Uma forma de manifestar o que, segundo ele, lhe foi impedido dentro de um templo religioso: “Não me deram uma carta de exclusão. Mas, me excluíram me tirando de vários lugares, me fazendo ser inativo lá dentro, me podando, me botando vigias, coisas assim”.
O caso de Fernando não é isolado. “Na verdade, a grande maioria do mundo LGBT já passou pela igreja. Numa festa gay, se você coloca uma música gospel, todo mundo vai saber cantar”, disse o jovem. São essas pessoas que recebem o microfone nas reuniões noturnas das terças. A divulgação dos encontros acontece por meio do Instagram @comunidadebolha.
— É um culto aberto. A gente quer que essas pessoas venham, elas são o público alvo, a gente quer que elas se sintam em casa, que seja a bolha de proteção delas. Aqui, a gente não vai falar que elas estão erradas, não vai querer provar o contrário. A gente vai dizer a real para elas, que Jesus aceita, que Jesus ama, que Deus inclui — explicou Fernando, que considera Deus uma divindade feminina.
Numa cidade tradicional e de histórico conservador como Campos, a iniciativa incomoda.
— Já aconteceu, na primeira reunião, de uma pessoa pegar o microfone e ter uma fala mal colocada, onde ela fala que Deus perdoa os gays, os assassinos, os pedófilos... Colocou todo mundo num comparativo. E a gente está pouco se f****** para o que ela acha disso. Em outro contexto, um diácono que tem oito igrejas em Campos veio contestar mil coisas, me sugeriu que eu me matasse biblicamente, que eu levava pessoas para o mau caminho. Para que eu colocasse uma corda no pescoço e me jogasse. Essa é a reação. Por isso, a gente está como um movimento que não se importa com o que estão falando — relatou.
Desde o início da Comunidade Bolha, os encontros vinham contando com público variante de 15 a 60 pessoas. Bem menos do que as cerca de 200 que, em pé, sentadas em sofás, bancos e até no chão, em formato parecido com um luau, assistiram à pregação do pastor Henrique Vieira na edição extraordinária da última quarta. Não sem antes acompanharem o discurso inicial de Fernando Borges, que agradeceu a Deus pelo momento e pela criminalização da homofobia, pediu amparo e proteção para os LGBT’s, e finalizou demonstrando insatisfação com a linha autoritária do presidente Jair Bolsonaro.
A proximidade do salão com o bar do Varanda Amarela permitiu que alguns assistissem ao culto tomando cerveja. Afinal, proibição é algo que passa longe do espaço. Não houve reclamação por parte do público, que em sua grande maioria interagiu com o pastor e acompanhou as canções de ativismo e os hinos executados por uma banda antes e depois da pregação. Henrique Vieira escolheu para o momento o texto de Lucas 6:1-5, passagem em que, num sábado, os discípulos arrancavam espigas em searas e as comiam. Repreendido por fariseus sobre a proibição de fazê-lo pela tradição, Jesus disse-lhes: “O Filho do Homem é Senhor até do sábado”.
— Jesus de Nazaré reinterpretou a tradição sempre que a tradição não dava conta da vida. Jesus não permitiu que um texto isolado fosse maior do que um corpo, do que uma necessidade diante dele — disse o pastor. — Não foi o ser humano feito para a tradição. A tradição foi feita para o ser humano — emendou. — É como se Jesus dissesse: Vocês estão salvando o dogma e matando as pessoas. E mais importa, para mim as pessoas do que o texto pelo texto — concluiu Henrique, que brincou ter achado estranho ser apresentado como “o hétero” e se colocou como coadjuvante no local, tratando como protagonistas os que o assistiam.
Em outro momento da pregação, foi aplaudido ao citar Ezequiel 18:23 (“Jesus odeia o pecado, mas ama o pecador”) e dizer que a mensagem servia para homofóbicos, não para os homossexuais. Considerou a leitura crua do texto como idolatria, colocando Deus acima da Bíblia e dizendo ser esta passível de interpretação, mas Jesus a própria liberdade. E citou a polêmica da transexual Viviany Beleboni, que em 2015 se crucificou durante uma Parada Gay em São Paulo.
— A Viviane interpretou corretamente a cruz. Na parede da Casa Grande do Brasil colonial, escravocrata e racista, homens brancos estupradores tinham uma cruz na parede e a Bíblia aberta sobre a mesa. Esses mesmos cristãos que se emocionam com a cruz de Jesus ficam em silêncio diante do feminicídio, do assassinato dos trans, com a morte da Ágatha (Vitória Sales Félix, de oito anos, que levou um tiro nas costas, no Rio de Janeiro) — lamentou o pastor.
A passagem I João 4, sobre o amor prévio de Deus, pautou o encerramento do culto.
— O que destrói uma família não é opção sexual, é intolerância. Uma família não é destruída quando um adolescente se descobre gay ou lésbica. É destruída quando, ao acontecer isso, há opressão, não acolhimento — afirmou. — Nenhuma regra está acima da dignidade humana. Jesus Cristo feminino, colorido — enfatizou.