Camilla Silva
15/06/2019 11:48 - Atualizado em 19/06/2019 21:26
“O Sistema de Justiça da Infância e da Juventude possui características distintas da Justiça para adultos: implica no julgamento adequado das causas do ato infracional e na proteção dos direitos de crianças e adolescentes”. Esta é a primeira frase da apresentação do atendimento socioeducativo no site do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos do Governo Federal. A realidade fluminense, no entanto, é a da repetição das mesmas mazelas do sistema prisional, entre elas a superlotação, afirmam especialistas. Por causa deste problema, o Supremo Tribunal Federal determinou, em maio, que as unidades de internação de menores infratores do Rio de Janeiro não poderão mais abrigar internos em quantidade que supere 119% da sua capacidade. A instituição que funciona em Campos tem 96 vagas, mas lotação atual é de cerca de 190 internos, segundo o Sindicato de Servidores do Degase. O Degase já começou a cumprir a decisão em outras unidades do estado, mas nenhum interno em Campos foi beneficiado com a medida até o fechamento desta edição. Segundo a Defensoria Pública, atualmente, o número do excedente é de cerca de 600 menores, mas Ministério Público fala em 700.
— A decisão só acontece porque há previsão, na lei que regula o sistema socioeducativo, de que as unidades de atendimento em meio fechado, para aqueles que são sentenciados à internação, não podem ser superlotadas. A socioeducação não acontece com superlotação. Cabe ao Estado, e no caso (das penas) de privação de liberdade, aos governos estaduais, a manutenção e a construção de novas unidades, para que a socioeducação e responsabilização aconteça sem trazer para o sistema socioeducativo o pior do sistema prisional, que é a superlotação, a violência, a propagação de doenças. É o que a gente está vendo agora no sistema prisional e a gente já teve em unidades do Degase: suspeitas de meningite, suspeita de outras doenças contagiosas devido à superlotação — defendeu Renato Gonçalves, vice-presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente.
A equipe de reportagem teve acesso a fotos da unidade que mostram que, além do excesso de lotação, a unidade sofre com a má conservação. No início da última semana, internos do Centro de Socioeducação (Cense) Professora Marlene Henrique Alves, em Campos, causaram um princípio de incêndio em um alojamento durante um motim. Segundo o órgão, seis menores estavam no local e a motivação não foi esclarecida. Ninguém ficou ferido.
Já em abril, cinco jovens e um adolescente fugiram do local. Os internos serraram grades e escaparam com auxílio de uma “Tereza” (corda feita com lençóis amarrados).
O presidente da Comissão de Direitos Humanos da 12ª Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), André Peralva, informou que uma reunião de urgência foi marcada com representantes da justiça, na próxima terça (18), para tratar do assunto. “É uma situação muito preocupante e a OAB está atenta a isso”, afirmou Ricardo Serafim, membro da comissão.
O policial federal e especialista em Segurança Pública, Roberto Uchôa, também comentou a atual situação das unidades do Degase. “Quando você tem uma unidade que se propõe a reabilitar jovens infratores e ela não cumpre essa função, você os devolve para sociedade da mesma forma. Isso é sério e traz mais insegurança”, ponderou.
Nenhum menor de Campos foi liberado
O Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) afirmou que as promotorias de justiça de execução de medidas socioeducativas da comarca da capital já analisaram os primeiros casos, que versam sobre adolescentes que praticaram atos infracionais análogos a crimes de furto, tráfico de drogas e roubos. Segundo o Degase, até a última sexta, foram entregues 43 decisões judiciais de liberações de internos baseadas na liminar concedida pelo ministro Edson Fachin. Nenhuma delas ocorreu da unidade de Campos. “O Departamento está cumprindo todas as decisões. A liberação efetiva do interno só ocorre mediante presença e assinatura do termo de entrega para o responsável legal. Os adolescentes que receberam medida de liberdade assistida passam a ser acompanhados pelos municípios”, afirmou em nota.
Segundo o Ministério Público, os casos estão sendo analisados, individualmente, pelas promotorias de justiça com atribuição para execução de medida socioeducativa de internação no Estado e serão enviados para as Varas da Infância e Juventude. “Ressalta-se que não se tratam de atos análogos a crimes de menor potencial ofensivo, na medida em que atos dessa natureza não ensejam a aplicação de medida de internação. Por outro lado, verificou-se que, na maioria dos processos analisados, os adolescentes possuíam antecedentes infracionais. Nas hipóteses de internação domiciliar, o Ministério Público está requerendo a aplicação das medidas cautelares previstas no artigo 319 do CPP, de acordo com as circunstâncias do caso concreto”, finalizou.
Ao menos 700 jovens serão afetados no RJ
O Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça da Infância e Juventude, no MPRJ, afirmou que, de acordo com os parâmetros estabelecidos na decisão proferida pelo STF, cerca de 700 adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação nas unidades do Estado do Rio de Janeiro deverão ser transferidos para cumprimento de medida em meio aberto, quando o ato praticado foi sem violência ou grave ameaça ou colocado em internação domiciliar. O STF previu, ainda, a transferência para outras unidades do sistema, mas não houve possibilidade “na medida em que todas as unidades do Estado encontram-se superlotadas com percentuais superiores a 119%”, completou o MP.
— Todos nós que militamos na pauta dos direitos humanos da criança e adolescente, nós pensamos que o adolescente pode e deve ser responsabilizado, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente. Inclusive, nos casos de maior gravidade, com a privação de liberdade. O que nós defendemos não é que o adolescente não seja responsabilizado, mas o Estado brasileiro também cumpra a sua parte, que é fazendo com que a gente tenha unidades que atendam o que determina a lei federal — afirmou Renato Gonçalves, vice-presidente do Conselho Municipal.
A superlotação, segundo a defensora pública Beatriz Cunha, que também é subcoordenadora da Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Cdedica), não contribui para a verdadeira educação desses jovens e o retorno deles à sociedade. “Na perspectiva atual, a superlotação inviabiliza o efetivo acompanhamento pedagógico dos adolescentes”, destacou.